Casal que mora em motorhome na Europa fala sobre desafios da vida nômade
Largar tudo e botar o pé na estrada é o sonho de muita gente. Inspirados pelas redes sociais e pela facilidade de trabalhar a distância, cada vez mais viajantes colocam o desejo em prática.
Lucas e Eve se conheceram em Dublin, na Irlanda, e estão viajando desde agosto de 2018 com o Rogerinho —o “idoso, porém esforçado, motorhome”, como descrevem carinhosamente o meio de transporte.
Aqui, eles relatam (com pormenores) os desafios de viajar em casal, viver num ambiente de 7 m² e viajar na Europa, continente em que o custo de vida é alto.
Para este post, considerei o 1 euro = R$ 4,61
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Vida nômade. São muitos os mitos a rodear esse termo que desperta interesse e controvérsia na internet. Há, no entanto, dois quase unânimes em relação a quem vivem na estrada.
O primeiro é que esse estilo de vida garante felicidade instantânea a quem o pratica. Basta abrir perfis de viagem no Instagram e lá está ele, perpetuado em fotos com falsos sorrisos e textos motivacionais rasos que sugerem a suposta vida perfeita de seus criadores. Além de consolidar uma mentira, é prejudicial à saúde mental de uma geração que mede sucesso e felicidade por meio de likes em redes sociais.
O segundo mito é o de que pessoas que vivem viajando são ricas ou são sustentadas pelos pais. Podemos atribuir a isso a necessidade humana de menosprezar e colocar em dúvida o esforço alheio para justificar a própria covardia e fracasso em promover em si mesmo a mudança reconhecida no outro.
Queremos desconstruir esses mitos por meio de um relato de quem já experiencia a vida nômade há um ano. Nós somos o Lucas e a Eve e desde agosto de 2018 viajamos e moramos no Rogerinho, nosso idoso, porém esforçado, motorhome.
Nos conhecemos em Dublin, onde vivemos dois anos até resolvermos ter a ideia de ir morar num carro. Enquanto para quem mora no Brasil converter os valores colocados aqui para real é um exercício válido, para a gente (já morávamos na Europa e recebíamos em euro), a conversão não se aplica. Outro ponto importante é que ambos possuímos cidadania europeia: eu, portuguesa, e a Eve, italiana, facilitando viajar e viver pelo continente.
Compramos o carro em janeiro de 2018 porque achamos o Rogerinho na internet, em uma revendedora holandesa, e tivemos que depositar, mesmo sem nunca tê-lo visto ao vivo, metade do valor para garantir a disponibilidade do carro sete meses depois.
Sim, depositamos 2.125 euros (R$ 9.798) tendo apenas meia dúzia de fotos em baixa resolução como base para escolher não só o carro que iríamos dirigir, mas também a casa onde iríamos morar pelos próximos anos. O baixíssimo preço e algumas recomendações positivas sobre a empresa falaram mais alto na hora de bater o martelo, mesmo que as condições de escolha não fossem ideais.
Ao finalizar a compra, o preço total pago no carro (com registro e inspeção já inclusos) foi 4.250 euros (R$ 19.595). Foi preciso arcar com algumas taxas para legalizar a situação do veículo, como a taxa de circulação e o seguro. O valor do imposto referente à permissão de circulação varia de país para país –na Holanda é 600 euros (R$ 2.766) por ano. Somados então aos salgados 1.200 euros (R$ 5.533) de seguro, o total do investimento inicial foi de 6.050 euros (R$ 27.894).
Mas não se engane, dificilmente será possível encontrar um motorhome por esse valor tão baixo. O Rogerinho é um modelo muito menor e mais antigo do que os campers normalmente à venda e seu preço refletia diretamente essas características.
O baque inicial foi grande. Ao vivo, o ambiente interno do motorhome parecia ainda menor do que as fotos sugeriam. Havíamos saído de um apartamento de 65 m² para vivermos em uma caixa de metal de pouco mais de 7 m² e o sentimento inicial de estar ali oscilava entre incredulidade e o mais puro desespero.
As heranças de donos anteriores chamaram nossa atenção: janelas quebradas, telas anti mosquitos rasgadas, pia rachada e defeitos no sistema elétrico. Eles se somavam aos muitos outros problemas dos quais já tínhamos conhecimento prévio, como o fato do carro não possuir água quente nem aquecimento central.
De 1992, e mais velho que a Eve, o Rogerinho apresentava claros sinais de idade. Com o tempo fomos resolvendo alguns problemas e nos acostumando a contornar outros difíceis ou caros demais pra arrumar. Atualmente julgamos o ambiente interno ideal para duas pessoas e, o que antes parecia apertado, hoje consideramos aconchegante.
O tamanho do Rogerinho é uma das poucas coisas que nos confere vantagem. Os motorhomes comuns são limitados a estacionar em vagas especiais de 6 metros, e nosso pequeno guerreiro cabe em espaços normais de carro, como estacionamentos de supermercados, shoppings e vagas de rua.
O que não melhorou com o tempo foram as condições mecânicas do carro. Em 12 meses já fizemos 5 visitas aos mecânicos e dormir em oficinas se tornou comum. Nessa brincadeira, já gastamos 1.357 euros (R$ 6.257) em reparos, como troca da bomba d’água e de um semieixo.
Nem todos os perrengues resultaram em um rombo em nossos bolsos e, curiosamente, foram nas situações mais complicadas que pessoas nos ajudaram sem pedir absolutamente nada em troca.
Ainda novatos e com duas semanas de motorhome, havíamos perdido a janela 72 horas antes ao sair dirigindo sem trancá-la, no episódio que consideramos nossa maior cagada em um ano de estrada. Desde então andávamos com a janela coberta por um remendo patético feito de silver tape e um sacola plástica. Ao perguntarmos quanto custaria, o mecânico holandês Johan simplesmente respondeu: “Não se preocupe com isso. Gosto da maneira como vocês estão vivendo. Nem tudo é sobre dinheiro”.
Outra alma boa que cruzou o nosso caminho foi a do seu Carlos, quando atolamos o carro em Portugal. Após duas horas tentando desatolar o motorhome, avistamos uma figura caminhando devagar, com roupas e chapéu de couro, um verdadeiro cowboy.
Ao perceber sua idade e a fragilidade de sua voz, pensamos que aquele senhor pouco poderia fazer. Em 10 minutos, seu Carlos nos guiou para fora do lamaçal. “Um bocadinho pra frente. Agora um bocadinho pra trás”, dizia com seu inconfundível e gostoso sotaque português. Dispostos a pagar pela inestimável ajuda, ele negou. “Isso não foi nada. Eu já passei muito por isso quando viajava de carro por Moçambique. Foi um prazer ajudá-los”.
LISTA DE PERRENGUES NUNCA ACABA
Há também os perrengues de relacionamento, mais do que normais entre pessoas convivendo tão intensamente em um espaço tão restrito. Frustrações e brigas são comuns e, em tempos, frequentes.
Outros problemas são os causados pelo clima. O Rogerinho é uma grande caixa de metal, o que faz com que amplifique as temperaturas do lado de fora. No inverno, vira um frigorífico e a água do encanamento frequentemente congela. No verão, o carro se assemelha a um forno e o calor e os mosquitos fazem de dormir uma tarefa quase impossível. Sem contar que a fraca geladeira passa a não dar conta de resfriar os alimentos e somos obrigados a jogar fora algumas coisas estragadas.
Mas nenhum perrengue se compara ao eterno terror de ver sua conta bancária cada vez mais enxuta. Se você leu até aqui para descobrir como ganhar dinheiro regularmente na estrada, eu sinto dizer, mas ainda não temos a resposta.
Até conseguimos, vez ou outra, levantar um dinheirinho. A Eve fotografa desde os 16 anos e fez ensaios pelos países por onde passamos. Eu, da área de animação 3D, fiz um ou outro trabalho de freelancer, o que, com nossa limitação de energia elétrica e internet, pode ser complicado.
Outra forma que encontramos de alimentar a conta bancária foi lançar um pacote de presets fotográficos. Apaixonados por fotografia, essa foi uma maneira que encontramos de unir o útil ao agradável e, para nossa surpresa, as vendas estão indo melhor do que esperávamos. Mas os lucros na estrada param por aí, totalizando 4.069 euros (R$ 18.761). Até participamos como cobaias em um estudo clínico em troca de alguns trocados.
No começo desse ano paramos a viagem para trabalhar. O ótimo salário mínimo na Irlanda e a chance de ficar hospedados na casa de amigos nos fez escolher ir para Dublin. Lá, passamos cerca de 50 dias trabalhando no subemprego, eu como camareiro de hotel e a Eve como funcionária de uma gráfica. Graças à ajuda de quem nos recebeu em suas casas, conseguimos juntar mais de 5.000 euros (R$ 23.053) –com o que ainda tínhamos guardado, é mais do que suficiente para passarmos o resto de 2019 sem trabalhar.
Quando não há uma renda frequente, o segredo é gastar o menos possível. Adotamos algumas práticas que se tornaram dogmas em nossa devota vida ao baixo custo: não transitar por estradas com pedágio (a não ser em extrema necessidade), comer o mínimo possível fora (levamos almoço quando visitamos algum lugar) e, principalmente, não dormir em campings ou estacionamentos pagos. É incrível o quanto se consegue economizar adotando apenas essas três regras.
Por outro lado, em algumas coisas pouco se pode fazer para se economizar –é o caso do combustível, despesa que só se evita ficando parado. Em 1 ano de vida na estrada já percorremos 22.073 km. Isso dá, em média, 2.066 km por mês e 72 km por dia.
Das 315 noites dormidas no Rogerinho, 179 foram em lugares diferentes. Cidades, vilas, praias, montanhas, florestas, parques, postos de gasolina e beiras de estradas de 16 países nos hospedaram com os mais variados níveis de glamour e segurança.
Em alguns nos sentimos em casa, como se estivéssemos em nosso quintal. Em outros, nem tanto, e a batida pesada na porta de moradores deixaram bem clara a insatisfação com nossa presença.
Tiveram também os meios assustadores, no meio do nada, que faziam levantar o cabelo da nuca quando chegávamos e éramos engolidos pela escuridão assim que desligávamos os faróis do carro.
O gasto com diesel representa quase metade do orçamento mensal. Costumamos dizer que o preço do combustível equivale ao aluguel dentro do orçamento de uma vida comum na cidade. Na média, o gasto mensal com isso é de 270 euros (R$ 1.245). Pode parecer extravagante quando se pensa em diesel, mas é um valor muito baixo ao considerar os aluguéis pela Europa.
Entre mercado, combustível, lazer, reparos e outras coisas, o gasto mensal é, em média, de 736 euros (R$ 3.393), ou 368 euros (R$ 1.697) por pessoa. Você lembra se alguma vez conseguiu cobrir todas as suas despesas do mês e de quebra ainda conheceu um ou mais países diferentes com tão pouco?
Se você não vive na estrada, nas costas de um motorhome ou de uma kombi, no banco de uma bike ou de uma moto, com uma mochila nas costas ou uma mala na mão, é provável que sua resposta seja, “não, nunca”.
Por outro lado, caso você não se encaixe em um desses exemplos, sua resposta provavelmente seria a mesma caso eu perguntasse se você já passou por tantos perrengues, dores de cabeça e desconfortos num período de apenas um ano.
São maneiras diferentes de encarar a vida. Qual é a sua?
Esperamos que todas essas informações tenham ajudado a esclarecer e desmistificar ambos os aspectos super e subestimados dessa tal vida nômade. Se nossa experiência despertou em você curiosidade, siga-nos no Instagram @rotaalternativarv, Lá postamos em detalhes todos os nossos perrengues e custo, além de fotos dos lugares por onde passamos.
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Aviso aos passageiros 1: Se você gosta de dirigir, mas não pensa ou sonha em largar tudo e cair na estrada, há a opção de tirar alguns dias de folga e viajar por estas 10 belas rodovias pelo mundo
Aviso aos passageiros 2: Se a grana não é tanta para ir até a Austrália, por exemplo, há também estas 6 estradas na América do Sul