Há 6 meses na estrada, engenheiro viaja de bike por Brasil, Colômbia e Venezuela
Mês passado eu postei aqui dicas do jornalista Ricardo Ampudia para viajar de bicicleta e fugir de roubadas. Alguns leitores se inspiraram e mandaram seus relatos.
Uma das pessoas que me procurou foi o engenheiro Guilherme Valadão (@roteiro0), que está há 6 meses na estrada. Ele partiu de São Luís (MA), cruzou o norte brasileiro e viajou pela Colômbia e Venezuela. Agora, está no Panamá.
Guilherme conta que nunca tinha ouvido falar de gente que viaja de bike, e que um mundo novo surgiu após ler o livro de um cicloviajante. Quem sabe esse relato (ou algum outro do Check-in) não te abra também os olhos para novas experiências?
Você também fez alguma de bicicleta? Ou de carro? Com a mãe, o pai, o cônjuge ou a família toda? Mande seu relato para o Check-in pelo email checkin.blogfolha@gmail.com.
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Sou engenheiro de produção, com mestrado pela USP, e estava trabalhando como gerente de suprimentos em uma indústria quando decidi, aos 29 anos, viajar de bicicleta. Completei 30 quando estava pedalando na Venezuela com tudo que possuo em uma bike.
Tive a oportunidade de viver em 3 outros países e em 4 estados brasileiros, então viajar era uma opção natural em um momento em que não me sentia mais feliz com a rotina que levava.
Planejava uma viagem “normal”, de mochila, para fazer trabalho voluntário em alguma parte do mundo.
Quando estava pensando nisso, li um livro de um brasileiro que havia viajado de bike, o “Homem Livre: Ao redor do mundo em uma bicicleta”, do Danilo Perrotti. A primeira reação foi: tem gente que viaja assim?
Isso mexeu totalmente comigo. Não dormi muito bem nos dias seguintes e ficava imaginando como seria explorar o mundo dessa maneira. Fui buscar mais informações e vi que há toda uma estrutura de equipamentos para isso, rede de contatos, aplicativos, etc.
Nem tinha bicicleta, mas a chama já estava acesa.
Deixei o trabalho e fui à casa dos meus pais, em São Luís, para me preparar por um tempo, pedalar, testar o que funcionaria melhor para dali sair rumo à América Central, passando pela Colômbia.
A magrela chegou e a primeira etapa foi explicar para meus pais o que faria. Demorou para que entendessem que sairia da casa deles já pedalando, e não que viajaria de avião para algum lugar e levaria uma bicicleta junto.
Já que não tinha uma bike desde que era criança, comecei a pedalar. No início, enquanto fazia 10 km, já buscava o que necessitaria para começar a viagem.
Os 10 km diários foram crescendo, os equipamentos que comprava foram chegando e pouco mais de 2 meses depois estava pedalando quase 100 km por dia, com tudo que considerava suficiente em mãos.
Então era hora de sair.
Início no Brasil
O início é tudo ao extremo. Uma sensação de liberdade nunca sentida antes misturada com uma sensação de incerteza sobre o que está por vir.
No dia de esteria, ao chegar à primeira cidade em que parei após 100 km de pedal, atualizei a rede social que criei para a viagem e logo amigos começaram a me escrever com indicações de onde poderia descansar. Resultado: na primeira noite, fiquei em uma casa não utilizada da família de um amigo de um amigo.
Assim, vi que uma forma de ter apoio seria por meio de conhecidos que estivessem acompanhando a viagem. Nos primeiros dias, por ainda estar relativamente perto de onde cresci, acabei sendo recebido até por amigos de amigos de amigos…
Uma experiência que marcou muito o início da jornada aconteceu logo na primeira semana. Em uma cidade no interior do Maranhão, ao me hospedar com o dono de um restaurante, conversei com um funcionário dali e, falando sobre a viagem, contei que iria para Cachoeira do Piriá (PA), onde não tinha nenhum contato ou informação até o momento.
Ele disse que era de lá e que um irmão me receberia. Mas o problema é que ele perdeu o celular e havia 6 meses que não falava com o familiar. Assim, propus um desafio: ele me daria as informações de como encontrar a casa do seu familiar e eu levaria o seu novo número de telefone. Minha recompensa seria a esperança de ter um local seguro para descansar na cidade.
No fim, encontrei o Seu Zé em Cachoeira do Piriá e os irmãos voltaram a ter contato. Não preciso nem dizer que o Seu Zé me deixou descansar tranquilamente na sua casa…
Colômbia
Cheguei à Colômbia de barco pelo rio Amazonas. Essa era uma viagem que desejava fazer e optei por ir à tríplice fronteira (Brasil – Colômbia – Peru) desta maneira saindo de Manaus. Foram 6 dias subindo o rio para chegar à Amazônia colombiana.
A jornada de bicicleta pelo país vizinho começou em Bogotá. Logo de início vi porque chamam a Colômbia de país do ciclismo. Ali se cruza com ciclistas nas estradas a todo momento. Em locais inimagináveis, no meio de uma montanha, de repente passa um senhor de idade pedalando ao seu lado. Essa cultura reflete em vias preparadas e em motoristas mais experientes para lidar com ciclistas.
A grande marca deixada pela Colômbia na minha viagem foi a da superação. O país é pura montanha, não tem como escapar! E eu, antes viajante que ciclista, que até o momento vinha pedalando somente por lugares planos, de repente me vi cruzando a Cordilheira dos Andes de bike, com mala e tudo.
O início foi sofrido, parava bastante para respirar, já que além da montanha também impacta a altitude. Me vi pedalando por subidas que não imaginava ser capaz, mas também a mais de 3.000 metros, encarando frio, vento e chuva.
Logo o corpo se adapta e, mais importante, a mente também. E não muito tempo depois já aprendi a desfrutar as subidas, que estão acompanhadas de descidas, claro. Passei a desfrutar e preferir pedalar pelas montanhas. Hoje me parece menos monótono e geralmente são locais com paisagens de tirar o fôlego e com pessoas receptivas.
Pensava inicialmente em chegar à costa colombiana e então cruzar ao Panamá para seguir pela América Central. Pois bem, em uma casa de ciclistas onde descansei por uns dias, conheci outros cicloviajantes e, com dois deles (um argentino e um uruguaio), fizemos o trecho de Medellín (noroeste) a Bucaramanga (norte) juntos.
Essa já foi a primeira grande mudança de rota na viagem, porque vinha de Bogotá (centro) rumo à costa passando por Medellín. Como decidi acompanhá-los por esse trecho, acabei virando ao leste e cruzando as Cordilheiras dos Andes outra vez. Haja subida!
O colega uruguaio havia passado pela Venezuela vindo desde o Brasil, também de bicicleta. Eu tinha bastante curiosidade, e ele me contou sobre as experiências que teve. Me disse que, apesar de tudo, o lugar que mais havia gostado em toda sua viagem foi o país de Maduro. Como eu já havia chegado a Bucaramanga e a Venezuela já estava logo ali, deu aquela curiosidade…
Venezuela
Passei a entender a complexidade que seria entrar ao país ao chegar à cidade colombiana de Cúcuta, na fronteira. Fiquei uma noite descansando em um hotel onde trabalhava um ciclista que me recebeu sem cobrar nada.
Soube lá que, na Venezuela, não poderia sacar dinheiro e que não aceitavam cartão internacional por conta dos bloqueios. Restava levar dinheiro, mas em que moeda? Pouco gente tinha informação e só fui entender isso após um tempo viajando pelo país. Em cidades fronteiriças, estão utilizando pesos colombianos como moeda principal e também fazem transações em dólar.
Mas o interior do país está dolarizado. O bolívar, moeda local, está em desuso devido à hiperinflação. É necessário carregar quantidades absurdas de notas para se comprar coisas mais simples. O dólar também dá mais estabilidade, apesar de não ser à prova da louca inflação que presenciei.
No país vi cidades em que a situação está quase beirando à normalidade mas, na maioria, choca qualquer desavisado. Comércios fechados, supermercados vazios, cidades desertas. Acompanhei um anfitrião por 5 horas em uma fila para colocar gasolina. Há lugares em que duram dias.
Em Maracaibo, a família de ciclistas que me recebeu não tinha água em sua casa havia duas semanas. Vivi diversos apagões, sendo que um deles foi geral, impactou todo o país por 3 horas.
Me hospedei com uma família em Coro, ao norte, que morava em uma rua onde só vivia gente mais velha. Todos os jovens emigraram. No país simplesmente não há mais oportunidades. A grande parte está sobrevivendo, cuidando de suas casas e esperando que algo mude.
Esse é um lado do país, o outro são as pessoas. Que povo!
Havia tido experiências muito boas no Brasil e na Colômbia, mas a Venezuela superou tudo. Cruzei o país durante 2 meses gastando menos de 30 dólares, porque sempre era recebido por alguém, um contato de um amigo de um amigo de um outro amigo que havia feito no país, ou então pessoas que simplesmente me viam na rua e me convidavam para me hospedar com eles, me davam comida, frutas, água.
E essa foi a impressão que ficou.
A bicicleta é mágica
Escrevo de dentro da minha barraca na Cidade do Panamá, e completo 6 meses de jornada.
E para que você entenda um pouco como é a experiência, cheguei ao lugar sem contatos. Se nada acontecesse, iria aos bombeiros pedir um cantinho para colocar minha barraca e descansar.
Entrando na cidade, um carro passou me chamando. O motorista era um colombiano vivendo no Panamá há 15 anos, com a esposa. Viajante, me contou que já subiu muita montanha em vários países e disse que sabe como é uma pessoa sair sozinha carregando tudo que possui, o desafio que é chegar a um lugar sem conhecer ninguém, só trazendo boa intenção e sede de novos conhecimentos.
Após uma conversa, me convidou para pôr minha barraca em uma área livre na casa deles pelo tempo que quisesse. Ou seja, chegando a uma das cidades mais caras do trajeto, sem contato e nenhuma indicação, a estrada tratou de fornecer uma solução e aqui estou em minha barraca, com acesso à internet, banheiro, cozinha e máquina de lavar roupa. Quer mais conforto que isso?
Próximos planos
Não saí com um plano fixo, mas somente com um norte, de seguir subindo a América Central, sem um objetivo de destino ou tempo. Se fosse para trabalhar com metas e cronogramas, estaria em um escritório. Agora, por exemplo, pensei que já estaria na Nicarágua ou na Costa Rica, mas teve uma Venezuela no meio no caminho.
Sempre digo que a viagem pode terminar amanhã se eu acordar sem vontade de seguir. Ou pode durar alguns anos mais, caso tenha condições, saúde, e esteja desfrutando.
Então segue aí e vamos viver essa aventura juntos!
Para finalizar, deixo uma sugestão. Monte em uma bicicleta e se surpreenda com as distâncias que podem ser percorridas e com a sensação de liberdade. Comece explorando os arredores da sua cidade e quem sabe um dia você não seja um cicloviajante.
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Aviso aos passageiros 1: Volto a sugerir o blog da jornalista Erika Sallum, o Ciclocosmo. Há muita informação sobre o mundo das bikes