Ciclista pedala sozinha por Nordeste e Colômbia em sua 1ª viagem
Gosto de compartilhar aqui as histórias de mulheres que, sozinhas ou acompanhadas, viajam pelo mundo, mostrando que as estradas não são percorridas apenas por homens.
Já postei o relato da Cândida, que pedalou sozinha pelo Reino Unido. Hoje, apresento a Érica Ceciliato (@iamericalatina), outra mulher que está em sua primeira viagem de bike.
Há quase nove meses na estrada, a paulista já percorreu mais de 5.000 km de estradas entre o Nordeste do Brasil, a Colômbia e o Equador —o Guilherme já contou para o Check-in um pouco de sua viagem pelo norte do país.
Você também fez alguma de bicicleta? Ou de carro? Ou a pé? Mande seu relato para o Check-in pelo email checkin.blogfolha@gmail.com.
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A todos os leitores, muito prazer! Meu nome é Érica, tenho 29 anos, turismóloga, comunicadora, nascida em Santos e nos últimos 10 anos, por conta de estudos e trabalho, estava vivendo em São Paulo. No passado, porque há oito meses peguei minha bike e fui embora.
O motivo? Uma mistura de insatisfação profissional e política com uma vontade de conhecer o mundo e suas pessoas e histórias. Também queria viver a vida um pouco mais intensa e menos privilegiadamente. E de modo sustentável, amigável (a bicicleta é o veículo mais simpático e querido do mundo), sendo meu próprio motor e tendo a velocidade perfeita para interagir com as pessoas e o ambiente. E digo mais: sozinha!
Sozinha porque sempre amei minha própria companhia, ser independente e já tinha experiência em viajar desacompanhada. Sozinha porque não queria esperar ninguém largar tudo e seguir comigo, com minhas vontades e manias.
Então comecei os planejamentos. Pesquisei os materiais mais resistentes de uma bicicleta e quem iria me ajudar na montagem. Encontrei pessoas que já fizeram viagens longas —obrigada, Mão na Roda. Planejei roteiro e mais tarde percebi que foi uma perda de tempo. E, por fim, me organizei financeiramente, o que já fazia há anos. Este eu considero importante, mas não primordial, já que dinheiro pode ser feito no caminho.
A ideia sempre foi dar uma volta na grandiosa América do Sul, mas não sem antes conhecer muito bem nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por tremenda e exuberante natureza. Para não chocar tanto minha família, saí de casa falando que iria viajar pelo Nordeste, chegar até o Festival de Parintins no final de junho e já voltava. Até porque mal sabia se daria certo mesmo. E como não tinha quase nenhuma experiência em estradas com uma bike, decidi começar da Bahia, terra de gente calorosa.
O que era pra ter início em Caraíva (sul da Bahia) começou em Porto Seguro, porque logo de cara conheci pessoas incríveis e ganhei carona até Arraial D’Ajuda. Evitei, assim, o primeiro grande perrengue de estrada de terra com alguns buracos e subidas fortes. E foi em Porto Seguro, terra conhecida como a do “descobrimento” do Brasil, que eu, ironicamente, comecei a me descobrir.
Viajar de bicicleta é uma autodescoberta cotidiana, mudanças de pensamentos e quebras de paradigmas e comportamentos, se você está disposto a isso. Tudo é tão disruptivo que a nossa cabeça pode se tornar nossa principal aliada ou inimiga, atraindo sentimentos e almas boas ou ruins, paralelamente. Vi, percebi e vivi tudo isso logo nos primeiros quilômetros.
Em meu primeiro mês de viagem, na Bahia, tudo e todos foram extremamente amáveis comigo. Minha realização aumentava junto ao meu rendimento físico, que passou de 50 km diários a quase 100 km, em menos de 1 mês.
Me encantava com cada “bom dia” pronunciado de uma forma gostosa de ouvir, com cada praia que quase sempre era mais linda do que a anterior e com sua gente sempre arretada. As coisas nas primeiras semanas fluíram tão bem que fui deixando qualquer resquício de medo ser levado pelas brisas do caminho.
Erroneamente também fui desapegando do estado de alerta, que deve estar sempre presente, sobretudo sendo uma mulher, me expondo e movimentando com uma bicicleta.
Fui perceber da pior forma. Chegando à ponte que dá início a Maceió, avistei um lindo entardecer com um arco-íris. Como a estrada estava movimentada, parei no acostamento e comecei a tirar fotos.
Um menino de uns 14 anos me abordou e pediu meu celular. Tentei demovê-lo da ideia pois precisava muito de um aparelho pra falar com quem iria me receber. A princípio ele desistiu, mas logo surgiu um rapaz maior e começamos a lutar ali mesmo, entre os carros. Achei que os motoristas iriam me ajudar. Que nada!
Depois de duas coronhadas na cabeça e uma no supercílio, eles conseguiram levar uma bolsa com câmera, cartão de crédito e o celular. E após tudo isso, ensanguentada, os carros começaram a parar.
Muitos desacreditavam que eu estava sozinha e que tinha sobrevivido. Tive a assistência por parte de várias pessoas, inclusive uma família me abrigou, me deu todo o suporte necessário, muito amor e caronas à delegacia —minha eterna gratidão à Maryelle e ao Paulo!
Esse é um dos exemplos de anjos que surgem em nosso caminho —todo cicloviajante tem várias histórias do tipo. Não sei se é porque vamos ganhando uma visão mais aguçada e tudo vai ficando mais evidente ou se é de nossa lei da atração mesmo. O que importa é que eles existem.
Em nenhum momento pensei em voltar para casa. Assumi a culpa de ter deixado o mal chegar a minha vida para me mostrar que nem tudo é conto de fadas e que tenho a obrigação de me manter alerta.
E assim segui. Um outro anjo disfarçado de ciclista, o Marcos, me acompanhou em meu caminho de saída de Maceió até outra praia. Depois disso voltei a ser eu com meus próprios pensamentos, músicas e silêncio. Trauma ou medo? Pode ter voltado a aparecer às vezes, mas nunca deixei tomar conta de mim.
Por todo o Nordeste segui acompanhada por estradas repletas de coqueiros, nasceres e pores do sol maravilhosos, dormidas em postos de gasolinas 24h e em quarteis de bombeiros, encontro com grupo de ciclistas. E me “abasteci” com muito cuscuz e tapioca e terminei com um show incrível do Alceu Valença nos festejos de São João em São Luís.
Foi no Maranhão inclusive que meus pais vieram me ver e tentar me buscar. Besteira, é claro! Até quando estavam presentes, os trechos que eles iam de táxi ou ônibus eu ia pedalando.
Ainda tinha todo um norte pela frente, literalmente. E lá fui conhecer uma nova cultura de costumes indígenas amazônicos. Tudo se tornou extremamente novo: comidas, músicas, tradições, paisagens e umidades (aja suor!).
Conheci as praias de rio mais lindas do mundo, o tacacá, o açaí puríssimo com farinha de mandioca, a bebida e o tempero mais vibratoriamente deliciosos do mundo —jambu, o tambaqui, entre muitas outras maravilhas amazônicas. Mas a maior e melhor delas foi viajar por 12 dias de barco (parando em Santarém, Parintins e Manaus) pelo rio Amazonas até a Colômbia. Mas não sem antes conhecer o surreal e surpreendente Festival de Parintins.
Há anos nutria uma enorme vontade de ver todas aquelas músicas e alegorias. Inclusive subi o Nordeste em uma velocidade um pouco forte para chegar a tempo. E consegui! No sábado pela manhã, já no segundo dia de festival, meu barco atracava em Parintins, com uma incrível recepção dos botos.
Sem falar que, graças a mais um anjo, o Paulo, consegui entradas e vi o festival direto de um camarote, sem pagar nada. Além de comemorar a vitória do meu boi Garantido 😀
Após tantas boas experiências, a curiosidade de vivê-las pelo outro lado do continente gritava alto. Em Manaus, após me reenergizar com banhos de cachoeiras, tomei duas decisões importantes: a compra de uma passagem de barco até Tabatinga, fronteira com a Colômbia, e um bilhete de avião dali até Bogotá e Santa Marta.
Mais sete dias de barco, de paradas em povoados indígenas afastados da civilização, de fazer amizade com todos os estrangeiros do barco e até ser a tradutora oficial deles, e finalmente cheguei ao meu primeiro novo país nessa viagem: Colômbia.
A partir daí começava a romper mais algumas grandes barreiras: a linguística —tendo que me comunicar em outro idioma—, a da cultura e costumes —sempre bem diferente dos que eu estava acostumada no Brasil— e, não menos importante, a das subidas.
As ladeiras, como eram conhecidas por todo o Nordeste, se tornaram cordilheiras, muito mais longas e íngremes. E, querendo ou não, me senti na obrigação de começar a apreciá-las em vez de fazer cara feia, como acontecia no Brasil.
Foi subindo por várias vezes e dias esse emaranhado de montanhas, mais conhecido como Cordilheira dos Andes (ou espinha dorsal do planeta), que aprendi que com subidas e descidas podemos ver e apreciar muito melhor a vida por todos os ângulos.
Após quase nove meses e mais de 5.000 km de pedaladas em centenas de estradas entre o Nordeste do Brasil, a Colômbia e o Equador, percebi que não era apenas o mundo exterior que todas elas me possibilitavam conhecer, mas também o meu mundo interior.
Foram nos momentos mais difíceis, com calor de 40 ºC, com subidas que sempre me pareciam intermináveis, com uma bicicleta de 17 kg e mais meus 28 kg de casa, comida e roupa nem sempre lavada que levo, que me dei conta de como a dificuldade nos ensina e engrandece. Nesses momentos fui entendendo que o sofrimento, quando visto como uma oportunidade de aprendizado, deixa de ser tão necessário e se torna o melhor aliado para nossa evolução.
Dia a dia percebo como a sociedade se porta muito mais sincera e empaticamente comigo. Apesar do cansaço do final do dia, sempre termino melhor do que começo. Para mim, não tem sensação melhor de ter alcançado um destino com minhas próprias pernas.
Porém, entretanto, contudo e todavia ainda tenho muito chão pela frente! O objetivo é chegar ao sul do continente, na última pontinha dele —Ushuaia— e então dar a famosa meia volta-volver para casa.
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Aviso aos passageiros 1: O cicloviajante Nestor Freire contou ao Check-in como foi viajar de bike para os dois extremos do mundo: Ushuaia, no extremo sul da Argentina, e Nordkapp, no limite setentrional da Noruega
Aviso aos passageiros 2: Confira algumas dicas para viajar de bicicleta e não cair em roubadas