Brasileiro com mobilidade reduzida já viajou para 140 países

O que impede você de viajar? Falta de dinheiro? De tempo? Medo do desconhecido?

O maranhense Luiz Thadeu Nunes e Silva conheceu 140 países entre 2009 e 2019.

A motivação para viajar tanto foi o grave acidente automobilístico que sofreu, em 2003, e que gerou nele uma infecção óssea.

O tanto de carimbos no passaporte fez o engenheiro receber dos Correios um selo comemorativo como o brasileiro com mobilidade reduzida mais viajado do mundo.

Ele até já explicou para o blog De grão em grão, da Folha, como dar uma volta ao mundo com R$ 900 mensais.

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Manhã quente de julho de 2003, acordo, abro a janela, vejo o mar de um azul suave, bem diferente da cor do mar de São Luís do Maranhão, minha cidade.

Estou em João Pessoa (PB) a serviço e neste dia à noite iria me encontrar com a minha esposa Heloísa e meus filhos Rodrigo e Frederico. Eles saíram de nossa cidade com o meu irmão Henrique, e nos veríamos em um restaurante em Fortaleza —era o aniversário de Henrique.

No meio do caminho perdi o ônibus que me levaria à capital cearense e peguei um táxi de linha, comum no Nordeste. Como estava um final de tarde chuvoso, a pista estava escorregadia e o motorista perdeu o controle do carro. Batemos de frente com uma caminhonete e tive fratura exposta de fêmur.

Sem saber da gravidade, desmaiei. Acordei no assoalho de um utilitário, ensanguentado, com os meus pertences furtados. A primeira pergunta que fiz: “Isso é um sonho?”. “Não, você sofreu um grave acidente, melhor não se mexer, você está muito quebrado”, alguém me respondeu.

Fui removido para um hospital de traumatologia em Natal (RN), onde fui operado ainda na madrugada. Nada está tão ruim que não possa piorar.

Fui operado, colocaram platina em minha perna esquerda, infeccionou e tive osteomielite, uma braba infecção óssea.

Tudo mudou em minha vida. Quatro anos de internações, em hospitais de RN, MA e SP, 43 cirurgias, cem horas de câmaras hiperbáricas, enxerto ósseo, bomba de morfina colocada sob a pele. Cadeira de rodas, possibilidade de amputação da perna esquerda, usei aparelho Ilizarov —uma gaiola medieval da bacia até o pé. Fiz muita fisioterapia para reaprender a andar, agora com muletas.

Sou engenheiro agrônomo e passei a trabalhar remotamente.

Frederico, meu segundo filho, foi fazer intercâmbio em Dublin, na Irlanda, e, após muita insistência, fui visitá-lo na companhia do meu primogênito, Rodrigo.

Para quem não tinha confiança para atravessar uma rua, atravessei o Atlântico, e estava no Velho Mundo, extasiado pela possibilidade de adaptar-me à nova realidade. Nesta viagem visitamos oito países, o que foi determinante para eu ganhar confiança.

De 2009, quando fiz a primeira viagem internacional depois do acidente, até dezembro de 2019, pisei com minhas muletas em 140 países em todos os continentes.

O engenheiro visitou 140 países entre 2009 e 2019 (Arquivo pessoal)

Meu slogan de vida é: “Terra, a aproveite enquanto estiver em cima dela”.

Hoje, digo que não há um só lugar no mundo que eu não vá. Se uma aeronave vai, e meu bolso deixa, lá vou eu.

Quando cheguei a 130 países visitados, tive a autorização da Infraero para a colocação de uma placa no aeroporto Cunha Machado, de São Luís, minha porta de saída para o mundo.

Agora que atingi 140 países, tive a honra e a felicidade de receber dos Correios um selo comemorativo como o brasileiro com mobilidade reduzida mais viajado do mundo.

Para 2020, tenho passagens compradas para dez novos países no primeiro semestre, e vou planejar a ida para outros dez lugares na segunda metade do ano.

Em minhas palestras sempre digo que minha matéria-prima são os sonhos. Todos os dias reservo meia hora para meditação e devaneios, tempo para a mente viajar cada vez mais longe.

Também tenho comprada uma volta ao mundo, na qual, em uma só viagem, pisarei em todos os continentes e tomarei banho em todos os oceanos. Enviei um projeto para a Marinha do Brasil e, caso seja selecionado, serei o primeiro brasileiro com mobilidade reduzida a pisar na base Comandante Ferraz na Antártica.

A pergunta que mais ouço é se é caro viajar muito ou se sou rico. A resposta é “não”. Em primeiro lugar, sou disciplinado para lidar com dinheiro, tenho poupança desde os oito anos de idade. Tenho planejamento de médio e longo prazo, e como me reinventei após a internet, vivo pesquisando passagens aéreas e hospedagens, além de fazer uso dos aplicativos, o que barateou muito o custo das viagens.

Para 2020 estou nos retoques finais para o lançamento do meu primeiro livro contando as andanças pelo mundo —ainda não tenho onde publicar.

O maranhense sofreu um grave acidente em 2003 (Arquivo pessoal)

Digo sempre que tenho três limitações, que para a maioria seria impeditivo ou limitante.

  1. Ando de muletas pelo mundo, nem mala eu puxo;
  2. Não falo inglês, e já passei pelos maiores perrengues, em diferentes países;
  3. Tenho bolso raso e sonhos completos.

Me comunico por aplicativos de tradução. Em setembro estive em Minsk, em Belarus, e deu problema na minha reserva de hotel. Lancei mão do Google tradutor e resolvi o problema.

E, como brasileiro, não desisto nunca. Apenas uma história: desembarquei de madrugada no aeroporto de Teerã, capital do Irã, e me encaminhei para a imigração, onde pegaria o visto de entrada. Havia lido nos blogs de viagem que o documento custava US$ 50, mas o rapaz da imigração cobrou US$ 90. Tentei argumentar, e como não nos entendíamos paguei e passei.

As negociações com os motoristas de táxis em países árabes ou em Colombo (Sri Lanka) são hilárias, mas graças a Papai do Céu tudo dá certo e termina bem.

É essa história que conto em minhas palestras, principalmente em escolas, hospitais e para pessoas da terceira idade, que termino dizendo: “Se eu posso, vocês também podem”. Vamos para o mundo, porque há um mundo de braços abertos nos esperando.

Atravesso oceanos e continentes para sentar em um café, em um final de tarde, seja em Katmandu (Nepal), Lárnaca (Chipre), Sydney (Austrália), Díli (Timor Leste), Paris (França), Nova York (EUA), Kiev (Ucrânia), Minsk ou Macau (China), para observar o frenesi das pessoas, porque o que move o mundo são os humanos. Digo sempre que não sou um turista, sou viajante.

Em minhas andanças, tenho encontrado pessoas fascinantes e extraordinárias, e com as maravilhas da tecnologia estamos conectados.

Agora em dezembro completei 61 anos, e para surpresa minha recebi, via WhatsApp, uma mensagem de um indiano que conheci em um voo de Mumbai para Goa, há quatro anos.

Convivo com dor, mas quando estou com viagem comprada, já perto do embarque, se a dor persiste dou um comando para o cérebro: se dói em casa e dói no mundo, vamos para o mundo.

Viajar por aí primeiro te deixa sem palavras, depois te transforma em um contador de histórias.

Um 2020 pleno de realizações, com muitas e abençoadas viagens.

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Aviso aos passageiros 1: O repórter Jairo Marques mantém na Folha o blog Assim como você, onde escreve sobre o dia a dia de uma pessoa com mobilidade reduzida

Aviso aos passageiros 2: Reuni algumas dicas para fazer seu primeiro mochilão. Inclusive, relato como foi a minha primeira viagem com a mochila nas costas e todos os perrengues no livro recém-lançado “Embarque Imediato” (O Viajante, R$ 39,90, 180 págs.)