Mulheres negras viajantes existem e resistem pelas estradas, diz enfermeira
É muito comum ver gente viajando por aí, de mochila ou de mala de rodinhas. Mas o incomum é encontrar pessoas negras desbravando o mundo.
Por essas e outras que trago, com alegria, o relato da enfermeira infectologista Rebecca Alethéia, que está vivendo há mais de 1 ano na África. Nesse período, ela trabalhou em ONGs, como a Médicos sem Fronteira, e em hostels.
Abaixo, enquanto espera o trem chegar, em uma estação em Moçambique, ela faz uma reflexão sobre as mulheres negras viajantes e sua (r)existência no mundo.
Você tem alguma história interessante envolvendo viagem e quer compartilhar? Mande seu relato para o email checkin.blogfolha@gmail.com.
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Quem vos escreve é Rebecca Alethéia, uma mulher negra viajante e cidadã do mundo que neste momento encontra-se na estação ferroviária de Caia, província de Sofala, em Moçambique.
Meu último voluntariado na África foi na cidade de Quelimane, e meu objetivo agora é chegar ao Maláui, depois de muitas outras paradas, segura e em paz. Para pensar em mulheres negras viajantes como forma de (r)existência, é praticamente impossível não retratar este cenário do qual estou vivenciando: a ferroviária.
Talvez você não saiba que boa parte de Moçambique é ligada por caminhos de ferro que são seguros, confortáveis e funcionam muito bem. Decidi encarar essa viagem para realmente ter a experiência autêntica de andar de comboio, que é como eles chamam a viagem de trem por aqui.
Uma curiosidade é que existem muitos trens funcionais por países na África, assim como já falei em um vídeo no YouTube: De trem na África do Sul.
(R)existir no mundo é uma atitude milenar que tentarei contextualizar melhor sobre. Neste momento são quase 3 horas da manhã e adivinha? O trem que iria passar às 22h atrasou e, agora, a previsão de chegada é às 5h.
A quantidade de mulheres me impressiona, de todas as idades e religiões. Solteiras, casadas, divorciadas e as viajantes com filhos.
Engana-se quem pensa que mulheres negras não viajam ou que apenas viajam as que têm dinheiro. Seguiremos viagem juntas por mais de 10 h para a cidade de Tete, em Moçambique. Esse é o meio mais barato e seguro até lá.
As mulheres africanas trazem consigo particularidades, andam sozinhas, porém sempre juntas. Elas podem até vir só, mas irão se juntar a outras no intuito de serem mais fortes, de terem apoio, de uma proteger a outra.
Aqui estão muitas mães com os seus filhos, e a madrugada é sempre a hora da mamada das crianças. Não me impressiona ver muitas delas despertando com leveza para alimentar os seus filhos, com uma naturalidade onde não há espaço para choro nem gritos.
O único som que ecoa é do bar próximo à estação de trem, que não abala a dormida coletiva na ferroviária.
Dormir no chão é um hábito africano, o sono vem e deitar no chão não tem sido problema. As mulheres, pra lá de prevenidas, colocam a sua capulana –tecido usado por moçambicanas em volta do corpo ou da cabeça– no chão e se enrolam com outra capulana para barrar a brisa da madrugada e se proteger dos insetos.
Trazem consigo suas malas, cestas, trouxas e todos os itens necessários para a viagem. Sinto-me em um cenário de filme de Hollywood ao ver na madrugada casais de jovens namorados caminhando pelos trilhos. Flertam e esperam o trem. Ela vai partir, ele irá ficar.
Existem 3 classes neste trem: 1ª, 2ª e 3ª. Infelizmente, as pessoas só têm condições de comprar a última classe, mas te digo que a primeira já está cheia. O trem é o meio mais barato de locomoção, e para essas mulheres, o que importa é chegar.
No mês em que fazemos comemorações alusivas ao Dia Internacional da Mulher, relato histórias reais de mulheres negras viajantes. Que talvez não sejam instagramáveis ou ganhadoras de milhões de likes, mas estão a se mover, percorrer e pertencer.
Não é de hoje, é de outro século. Mulheres negras viajantes existem e resistem diariamente pelas estradas, rodoviárias, ferrovias e aviões.
Nossas vidas são diferentes e precisam ser tratadas com diferenças, especificidades e cuidados. Por reconhecer que a trajetória de uma mulher negra é única e traz consigo muita ancestralidade, países do continente africano nomearam datas específicas para as mulheres negras, que vão além do dia 8 de março.
Conheça agora um pouco da história das mulheres negras viajantes e nossa (r)existência no mundo:
30 de janeiro – Dia da Mulher Guineense
Essa data homenageia Titina Silá, que lutou ao lado de Amílcar Cabral pela independência da Guiné-Bissau. Ela foi morta em uma emboscada em 1973.
Em sua homenagem, e também a todas as outras mulheres negras que lutaram pela independência do país, o Dia Nacional da Mulher Guineense foi instituído em seu aniversário de morte.
2 de março – Dia da Mulher Angolana
Celebra-se o reconhecimento do papel das mulheres empenhadas na luta de resistência do povo angolano contra a ocupação colonial portuguesa.
7 de abril – Dia da Mulher Moçambicana
O aniversário de morte de Josina Machel, segunda esposa de Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique, é comemorado no país. Josina juntou-se à luta armada de libertação ainda jovem e é considerada uma heroína em Moçambique.
25 de julho – Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha
Essa é uma data que existe para rememorar a luta de mulheres negras latino-americanas e caribenhas em prol de uma sociedade mais justa. Além de ser um dia para relembrar a história de Tereza Benguela, líder quilombola e símbolo da resistência contra escravização.
31 de julho – Dia da Mulher Africana
Este dia foi consagrado no ano de 1962 para a reflexão do papel da classe feminina da África na sociedade.
9 de agosto – Dia da Mulher Sul-Africana
O surgimento desta data aconteceu no ano de 1956, quando mais de 20 mil mulheres sul-africanas de todos os pontos do país marcharam em direção ao Union Buildings, Palácio Presidencial em Pretória e sede do governo.
Elas protestaram contra a extinção das leis que restringiam o movimento das mulheres.
Nesta ferroviária, vejo diversas histórias em um único cenário e percebo que aqui também escrevo a minha: uma mulher negra viajante que (r)existe. Vim trabalhar como voluntária em Moçambique, com uma mochila nas costas, vivenciando experiências de troca de trabalho em hostels, ONGs e casas de família que sempre foram muito afetuosas e cuidadosas comigo.
Agora preciso ir, o trem acaba de chegar. Embarque você também nessa viagem que é existir.
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