Em cicloviagem pela Alemanha, professor vê castelos, campos e lagos

Os adeptos da cicloviagem desse mundão já proporcionaram aqui relatos de expedições pela Islândia, Reino UnidoAmérica Latina e interior do Brasil.

Agora, é a vez do professor de alemão e tradutor Guilherme Spinelli falar sobre sua pedalada pela Alemanha. Logo antes de começar o semestre letivo, ele teve um período livre e organizou uma expedição de 1.200 km em 24 dias.

No caminho, visitou ex-alunos, se hospedou em casa de desconhecidos, atravessou a fronteira com a Suíça e vivenciou inúmeras experiências. Tudo isso acompanhado de uma bike que comprou pela internet, só olhando as fotos.

Em tempos de coronavírus não podemos viajar, e muitas vezes nem sair de casa. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.

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Meu sonho era viajar de bicicleta de Blumenau (SC), cidade onde morava, ao Chile. Já havia começado a planejar a rota, comprar o equipamento necessário e procurar alguns parceiros para a viagem, mas a vida tomou outro rumo e vim estudar um semestre em Bremen, na Alemanha.

Como teria um pouco mais de um mês de férias antes das aulas começarem, decidi fazer um tour por aqui. Até porque, sendo professor de alemão, tinha alguns alunos que agora estavam espalhados pelo país estudando ou trabalhando e gostaria de visitá-los.

Procurei intensivamente na internet bicicletas usadas até que achei uma ideal para minha viagem e para o meu tamanho, e por um valor bem em conta. O problema era que ela estava a mais de 800 km de mim, em uma cidadezinha no sul da Alemanha, perto do Bodensee (lago Constance).

Decidi então mudar o plano, que originalmente era ir em direção ao sul, e começar lá e depois vir ao norte, onde moro. Era um certo risco planejar o começo da viagem com uma bike que eu só tinha visto por fotos, mas combinei um horário com o vendedor, empacotei as coisas nos alforges de bicicleta, comprei uma passagem de trem noturna —foram aproximadamente 12 horas— e fui!

Chegando lá, tudo correu melhor que a encomenda: a bike estava em estado perfeito, ajustada e, o mais importante, adequada ao meu tamanho! Parti dali rumo ao meu primeiro destino: Rothenburg ob der Tauber. A cidade fica na Baviera e é atração turística típica. Eu, particularmente, estava indo visitar um amigo.

A distância era de 250 km entre os locais e eu não estava muito convencido de que ia completar o percurso todo em um dia. O plano era pedalar o quanto desse, pra ver aonde eu chegava.

O dia estava lindo, e andar pelas ciclovias em meio aos campos de canola, bem amarelos, é uma sensação incrível. A liberdade de estar sozinho, apenas a brisa, o verde e amarelo dos campos e azul do céu… A paisagem montanhosa do sul da Alemanha é impagável, com vários pontos com vista para cidades pequenas ou natureza.

As ciclovias também são ótimas, se conectam pelo país inteiro e na maior parte do tempo são asfaltadas. Se tive que dividir a pista com os carros por 30 km neste mês de viagem foi muito, e quando você é ultrapassado, os carros geralmente vão pela pista do lado.

No fim do primeiro dia, quando começava a escurecer, eu tinha pedalado 134 km e tinha chegado a Ulm. Na estação de trem de lá, tentei comprar um tíquete para o resto do trecho, mas nem todos os vagões aceitam bicicletas e o próximo deste tipo só partiria no dia seguinte.

Liguei para meu amigo de Rothenburg, avisei que não teria como chegar naquela noite e procurei um Jugendherberge (albergue da juventude). No outro dia de manhã aproveitei tudo que podia do bufê de café da manhã e peguei o trem para Rothenburg ob der Tauber. Lá passei uma boa semana.

A cidade é super simpática, rodeada por muros imponentes e com turistas completando a paisagem. Meu prazer secreto é andar à noite por lugares extremamente turísticos como esse, quando estão desertos e silenciosos. É como se fosse um local completamente novo!

Além disso, em Rothenburg é possível fazer a caminhada completa ao redor da cidade em cima do muro ou ao redor dele —ambas valem muito a pena.

De lá parti para Stuttgart, a capital de Baden-Württemberg, famosa sede da Mercedes e Porsche. Foi durante toda a viagem o maior trecho percorrido em um dia (169 km), fisicamente bastante desgastante. O relevo também faz uma grande diferença: foram quase 2.000 metros de altimetria.

No caminho passei por Schwäbisch Hall, uma cidade tipo cartão-postal, com várias casas enxaimel construídas diretamente ao lado do rio, e fiz um lanche com uma amiga que estava em um curso de alemão.

Segui meu caminho, subindo e descendo morros e sendo constantemente ultrapassado nas subidas por casais de idade com suas E-bikes. Depois de toda a quilometragem do dia, fui calorosamente recebido por um aluno com um delicioso risoto, apesar da minha indelicadeza de chegar pouco depois da meia-noite à sua casa.

O dia seguinte foi para dormir bastante, comer bem e passear pelo belo parque Killesberg. A estação deixava o parque florido com as mais diversas cores e plantas, a vista da torre, bem no meio do parque, também valeu cada quilômetro pedalado até lá. Outra boa surpresa foi que essa era a época da colheita de uvas, então as parreiras que se podem ver ao redor da cidade estavam completamente carregadas.

Meu objetivo era chegar a Zurique, onde queria visitar uma aluna e grande amiga, mas eu não teria condições de cobrir a distância de Stuttgart à capital suíça em um dia. Procurei, então, por um anfitrião via Couchsurfing e encontrei uma divertida família de origem russa em Balingen, bem no meio do caminho.

O caminho até lá foi provavelmente o trajeto mais interessante de todos, passando pelo Schloss Solitude (castelo Solitude), pelo Radschnellweg (via rápida para bicicletas) e por um parque feito ao lado de uma base militar americana, de onde se ouvia os treinos de tiro ao caminhar e pedalar —até haviam placas dizendo que, se você se mantivesse no caminho, o parque era completamente seguro, mas isso não chegou realmente a me tranquilizar.

Saindo dali, logo me deparo com uma bela descida, suave e talvez merecida, de mais de um quilômetro, pra relaxar e aproveitar a paisagem. Ao fim da descida, outra surpresa maravilhosa: o mosteiro de Bebenhausen, que posso recomendar para qualquer viajante. Um lugar tranquilo, silencioso, com pequenas hortas e uma arquitetura rústica belíssima.

A próxima parada foi em Tübingen, tanto para comer o sorvete do dia, como para ver a região do ponto mais alto da cidade, diretamente no centro. Pouco antes de Balingen, avisto de longe um castelo sobre o pico de uma colina, que vai aos pouco ficando maior. Era o Burg Hohenzollern —melhor paisagem eu não podia esperar.

Logo o castelo ficou para trás e cheguei ao meu destino. Em Balingen, pude descansar por um dia, me divertir brincando com as crianças e fazer uma trilha leve para aproveitar a natureza.

Finalmente chegou o momento em que iria alcançar a Suíça! Cruzar a fronteira de bicicleta era uma sensação inédita pra mim. Saí pouco antes das 8 horas e o frio de 7 ºC me obrigou a usar jaqueta por boa parte da manhã.

Um dos pontos altos do trecho foi a pausa em Donaueschingen, que tinha uma pacífica e simpática praça no centro da cidade. De frente para a praça fica a prefeitura, azul e em estilo bem marcante, e uma Kombi, restaurada e toda enfeitada, estava exposta na frente do prédio e alguns poucos moradores conversavam sentados nos bancos. Dali em diante o trajeto foi em grande parte cruzando fazendas e ligando pequenos vilarejos, com morros para subir e descer, e  vacas mugindo com sinos pendurados no pescoço.

A fronteira da Alemanha com a Suíça é no mínimo curiosa. Embora que para a travessia de carro exista um certo controle, havia pontos onde um riacho marcava a divisa e bastava atravessar uma pequena ponte de madeira e um bosque para se estar no outro país.

Eu segui a ciclovia com sinalização até passar pela fronteira. Era uma ponte com aduana em ambos os lados —uma alemã e outra suíça. Passei cuidadosamente, olhei por toda a parte, mas não vi ninguém se importando com as bicicletas que cruzavam. Pronto! Eu estava na Suíça! Como que em um passe de mágica, tudo toma outra cara.

O idioma soa bastante diferente, e os cumprimentos “servus” dão lugar a “grüezi”, a sinalização muda de cor e as placas dos carros têm outro formato. Pedalo ao pôr do sol até Zurique e finalmente alcanço meu destino, onde me espera uma ducha quente e Röstis (batata ralada frita) com linguiça preparados pelos meus anfitriões.

A Suíça é tão limpa como indescritível. A capital conta com o lago de Zurique, que tem uma belíssima paisagem, e subir na Grossmünster é uma atração que enche os olhos. Em um dos dias seguintes caminhamos pela região de esqui Hoch-Ybrig, e as montanhas são inimaginavelmente altas. Já no bondinho os carros no estacionamento vão ficando minúsculos, e da primeira parada pega-se mais um bondinho para continuar subindo até o cume da montanha.

Outro passeio de arregalar os olhos é ver a Rheinfall (queda de água do Reno). A estrutura permite que o turbilhão de água seja visto de diferentes pontos e, para quem quiser, existe a possibilidade de fazer um passeio de barco e chegar bem perto da queda de água —pelo menos perto o suficiente pra ninguém ficar seco.

Em outra ocasião fomos passar o dia em Lucerna, cujo cartão postal conta com a ponte de madeira mais antiga da Europa, a Kapellbrücke. A estadia chegou então ao fim e a viagem de retorno rumo ao norte começava.

Passei novamente em Balingen, onde dessa vez fiz trilhas para ver o castelo Hohenzollern de diferentes ângulos e segui novamente a Stuttgart. A maravilhosa descida antes do mosteiro de Bebenhausen se tornou agora uma bela subida depois do mosteiro.

Além disso, no meio da subida fui pego por uma boa chuva de verão. Bem na minha frente uma senhora simplesmente tirou sua capa de chuva da mochila, vestiu-a e seguiu seu caminho. Eu, menos preparado, tive que esperar 15 minutos embaixo de uma árvore, me protegendo como podia da água que caía.

Na minha recente estadia em Stuttgart havia conhecido os colegas de apartamento do meu anfitrião, um chinês e um taiwanês, que falaram em fazer um hot-pot (prato típico chinês e taiwanês) caso eu voltasse lá. Foi uma noite divertida, experimentando diferentes tipos de temperos apimentados e soja nas mais variadas formas.

Desta vez também tive tempo de pedalar com meu anfitrião, costeando os vinhedos locais. Fomos até Esslingen, uma cidade que garante umas boas fotos, com seus cantos floridos, pontes e belas casas enxaimel.

De lá parti para Bruchsal, minha última parada em Baden-Württemberg antes de chegar ao estado de Hessen. Lá, eu ficaria alguns dias na casa de conhecidos da família. A época também era de colheita de abóboras e neste trecho era possível ver trabalhadores em muitas das plantações, algumas destas expondo orgulhosas à venda os diversos tipos do vegetal. De fato, existem até espécies decorativas, que não são próprias para o consumo.

O sistema de venda é por vezes na base da confiança, há um cofre no qual se inserem as moedas e os preços estão indicados para cada tipo de abóbora. Além disso, a caminho de Bruchsal passei por parte da Fachwerkstraße (estrada do enxaimel), uma rota entre vários vilarejos repletos de casas em estilo enxaimel.

O próximo trecho foi até Darmstadt. A diferença de relevo ao se chegar em Hessen é nítida e os morros começam a ficar cada vez mais raros e menos íngremes, o que veio muito bem a calhar, porque meu corpo começava a dar cada vez mais sinais de cansaço.

O caminho seguia por muitos campos de abóbora e canola. A pausa para o almoço fiz em Mannheim, com vista para a Wasserturm (torre d’água), que fica no centro da cidade e é um dos símbolos locais.

Até chegar a Darmstadt o tempo tinha se mantido seco (à exceção do pouco de chuva perto de Stuttgart), mas agora, faltando 10 km para chegar ao meu destino, começou uma leve garoa, que aos poucos engrossou. Até fiz uma pequena pausa, mas decidi que, se continuasse pedalando, quem sabe o pior da chuva não me pegaria. Não foi o caso.

Faltando 5 km para chegar eu parei mais uma vez e conferi a previsão do tempo: seriam mais 2 h de pancadas de chuva. Aí foi assim mesmo, debaixo de um aguaceiro, que pedalei os quilômetros restantes até meu anfitrião, um conhecido de longa data.

Chegando lá deu pra ver que a jaqueta impermeável não era tão impermeável assim e um dos alforges também cedeu em um ponto. Consegui achar um par de roupas secas e depois de uma boa ducha quente fomos comer um Rollo (semelhante a um wrap) e tomar cerveja no bar mais próximo.

Embora a chuva não tenha facilitado dar uma olhada no local ao chegar, fiquei impressionado com a universidade, que mistura prédios clássicos com outros bastante modernos.

Graças ao aquecedor do apartamento, no dia seguinte minhas roupas estavam praticamente secas e pude seguir viagem a Gießen, mas não antes sem passar pelo bem cuidado Prinz-Georg-Garten (Jardim Príncipe Georg) e pela Waldspirale, um condomínio famoso por seu estilo extravagante, desenhado pelo austríaco Hundertwasser.

O caminho para Gießen passava por Frankfurt, onde fiz uma boa pausa à beira do rio Main antes de ir para o centro dar uma conferida na Altstadt (cidade antiga). Nesse mesmo dia ainda encontrei um outro trecho de via rápida para bicicletas e fiquei fascinado ao ver um posto de auto-atendimento para reparo de bikes e bomba de encher pneu!

Em Gießen aproveitei para descansar, afinal acabei pedalando dois dias seguidos. Lá acontecia a Herbstmesse (feira de outono), um programa típico alemão, que é realizado em várias cidades, com diferentes nomes e em diferentes datas. A princípio são atrações como carrosséis, montanhas-russas, estandes de tiro e carrinhos de bate-bate, tudo isso com pausas para batata frita e salsicha em suas variadas formas.

A viagem seguiu para seu ponto final em Frankenberg, um pequeno município em Hessen. Lá mora a família de minha namorada e eu iria conhecê-los, encerrando ali minha viagem e voltando para casa de trem.

Um dos pontos altos deste último trecho foi passar por Marburg, onde a cidade antiga fica em uma colina e se pode ver grande parte dos prédios ao se passar pela margem oposta do rio. A Elisabethkirche (Igreja de Santa Isabel) salta aos olhos e marca a paisagem.

E assim chegou ao fim minha rota. Foram 24 dias de viagem, dos quais pedalando em 11, totalizando pouco mais de 1.200 km. Comigo levo a gratidão de ter sido hospedado por pessoas tão calorosas, as belas imagens da Suíça e do sul alemão —às vezes em foto, às vezes apenas em minha memória— e a vontade de organizar a próxima aventura.

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