Jornalista viaja sem rumo por praias e cidades palco do Dia D, na França
Muitas pessoas gostam de planejar uma viagem nos mínimos detalhes, como em qual hotel/hostel ficará, quais atrações serão visitadas a cada dia e quais serão os pratos/bebidas de cada refeição. Há também aqueles que deixam a vida levar e vão a um local sem nenhuma pesquisa prévia.
O jornalista e ator Francisco Zaiden adota o segundo estilo, mas, acompanhado dos pais, organizou o roteiro por Paris para ver as atrações típicas da cidade.
Ele aproveitou uma brecha na viagem e convenceu os familiares a irem ver praias e cidades palco do Dia D —em 6 de junho de 1944, tropas norte-americanas desembarcaram na Normandia e travaram grandes batalhas contra os alemães, que ocupavam a França.
Em tempos de coronavírus não podemos viajar, e muitas vezes nem sair de casa. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.
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Um dos maiores prazeres que tenho quando viajo é poder ir aonde eu quiser quando dá-me a telha. Muitas das vezes ando por uma cidade ou uma estrada sem um roteiro fixo. Sempre tenho uma ideia de aonde ir, mas como chegar a determinado destino é outra coisa. Nem sempre é a melhor maneira de viajar por questões práticas, pois podemos ter gastos ou contratempos outros —como ficar sem combustível por achar que teria um posto que nunca existiu. Mas, às vezes, temos surpresas e experiências incríveis. Este roteiro aconteceu assim.
Diferentemente do normal, desta vez não estava sozinho: meus pais me acompanhavam. Estávamos na França para uma semana de viagem turística típica: torre Eiffel, passeio noturno pelo Sena em um clássico bateau mouche, Palácio de Versailles com guia, Louvre, Vale do Loire, etc. Era nossa primeira vez no país. Eu fui por conta de um intercâmbio, e meus pais aproveitaram a oportunidade. Meu irmão, que já estivera na França, recomendou a ida ao Monte Saint-Michel, no extremo oeste da Normandia, a cerca de 350 km de Paris. Fãs de automobilismo, meu pai e eu planejamos viajar de carro via Le Mans, sede da mítica 24 Horas de Le Mans.
O roteiro era este: sairíamos logo cedo da capital francesa, via Le Mans, para passar a tarde na belíssima e mágica ilhota que abriga a abadia e santuário em homenagem ao arcanjo São Miguel. Depois iríamos a Caen para dormir e seguir viagem de volta a Paris pela autoroute A13, com uma parada em Rouen, a linda cidade onde Joana D’Arc morreu queimada no século 15. Fizemos tudo como planejado e eu poderia escrever um texto só sobre esse roteiro. Entretanto, este é sobre um desvio de rota que fizemos em uma bifurcação na saída de Caen.
Caen é uma bela cidade, a cerca de 230 km de Paris por carro, que foi destruída na Segunda Guerra Mundial. Após a bem sucedida invasão dos Aliados no dia 6 de junho de 1944 no litoral da Normandia, Caen sediou relevantes batalhas contra a Alemanha nazista. Vitoriosos, os Aliados utilizaram o local como uma importante rota até a capital. As cicatrizes são possíveis de ver, até hoje, nas marcas de balas nas paredes e muros de prédios em ruínas no centro da cidade.
Tais cicatrizes me fizeram sugerir um desvio de última hora aos meus pais. Quando saíamos de Caen sentido Rouen levantei a ideia de que, ao invés de irmos direto, poderíamos ir antes à costa da Normandia, nas praias do Dia D. Eles se interessaram. Parei o carro no acostamento de uma estrada na saída da cidade e fui direto ao Google Maps. Não era longe: de Caen a Luc-sur-Mer, primeira cidade que apareceu no app, seriam cerca de 17 km. Era dia 18 de novembro de 2017 e, apesar do frio de outono francês, fazia sol e meus pais apoiaram a ideia. Colocamos o nome da cidade no GPS do carro alugado e alteramos a rota. Seria cansativo, mas por que não?
Logo em Luc-sur-Mer, pequena cidade da praia batizada pelos aliados como Sword Beach, nos deparamos com um tanque norte-americano restaurado em uma praça. Era um aviso do que encontraríamos ao longo da costa. Nós saímos cedo de Caen, o que nos deu tempo suficiente para ver as cidades e praias com calma. Mas não o suficiente para entrar nos museus dedicados ao Dia D. E são muitos. Qualquer vila e cidadela na costa possui um edifício ou um memorial sobre a data.
A única exceção foi o Cemitério e Memorial Americano em Colleville-sur-Mer, cidade da famosa e triste praia de Omaha. Muitos já viram o local no filme “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg. As primeiras cenas —onde um veterano da guerra procura por uma lápide específica— foram gravadas ali. Esse lugar ficou em minha mente como o único que eu sabia que existia, sem pesquisar na internet, e o único que era uma exigência minha visitar. Mas voltarei ao Memorial nos próximos parágrafos.
Por enquanto quero registrar o que foi visto ao longo dos 42 km de costa percorridos em quase 7 horas, se não me falha a memória. Como disse há dois parágrafos, toda e qualquer cidade da costa possui um museu ou um memorial dedicado ao Dia D. Além disso, há uma quantidade enorme de restos e marcas da guerra. Afinal, é importante entender que as próprias cidades e praias tornaram-se um museu a céu aberto.
Como em Caen, é possível encontrar marcas de balas em paredes e prédios e casas em ruínas. Mas, acima de tudo, tanques e outros veículos de guerra, metralhadoras e bunkers —muitos bunkers— durante todo o percurso. Não há uma cidade que não tenha em suas praias bandeiras dos países aliados, placas em memórias dos mortos e estátuas e monumentos dedicados à lembrança da guerra.+++
Em Courseulles-sur-Mer, cidade da batizada Juno Beach, pude fotografar um bunker alemão na praia com o que me pareceu uma metralhadora restaurada. Na mesma cidade, ao longo de algumas ruas, um tanque americano bem preservado serve como “decoração” de uma praça. O mesmo ocorre em outras cidades, como em Asnelles, por exemplo. Em Longues-sur-Mer, a mais preservada rede de bunkers alemães; já em Saint-Côme-de-Fresné, um canhão de artilharia antiaérea repousa em um estacionamento público.
Exemplos como estes são muitos. Como não preparei um roteiro de viagem, fui colecionando fotos aleatórias, muitas delas sem registro preciso de onde foram tiradas, como o caso dos veículos anfíbios enferrujados nas areias de uma praia na qual não guardei o nome. Mas, no fim, pouco importam os locais exatos, a quantidade de artefatos do Dia D é imensa e qualquer um que realizar tal viagem também sem roteiro os encontrará com muita facilidade. Para os precavidos, há muita informação na internet e roteiros prontos em empresas turísticas especializadas que, espero, sobrevivam ao pós-pandemia.
O registro mais importante desta viagem foram as sensações. A mim e aos meus pais ficou guardado em nossa memória a percepção do que era estar naquele palco que em 2017 estava em paz, mas que, décadas antes, teve seu mar tingido em cor vermelha. Foi impactante estar lá. Especialmente no Cemitério e Memorial Americano em Colleville-sur-Mer, citado alguns parágrafos atrás.
Quando lá estivemos a entrada era gratuita. Do próprio memorial podemos avistar a praia de Omaha, palco da batalha mais sangrenta, localizada já na cidade de Saint-Laurent-sur-Mer. Choramos ao ver o mar de cruzes e estrelas de David com os nomes dos soldados mortos na praia. São muitos, incontáveis para quem lá está —9388 de acordo com o Wikipedia. Dentro do memorial há também capelas e monumentos em homenagem aos mortos. Foi uma experiência de fato única percorrer os campos verdes e bonitos repletos de nomes de jovens, boa parte mais jovens que eu, que morreram naquelas praias.
Foi nossa última parada. Havia ainda outro importante ponto do Dia D na praia de Utah em Sainte-Marie-du-Mont, mas estávamos a ficar curtos de tempo pois ainda haveria 280 km para voltar a Paris. No retorno, ficamos em silêncio no carro por um tempo porque era a única coisa possível de se fazer depois de uma manhã e parte da tarde dedicada à memória de tão brutal momento da história da humanidade.
Eu pensei muito nos idosos que vi em todas as cidades. Eram sobreviventes ou filhos de sobreviventes daqueles tempos. O que eles pensam? Como eles vêem a vida e o mundo depois de suas cidades e familiares vivenciarem a guerra em seus dias mais dramáticos? Como seria crescer em uma cidade onde há armas, veículos e bunkers pelas ruas?
Passamos o fim da tarde e parte da noite em Rouen, uma encantadora cidade. Vimos a igreja dedicada a Joana D’Arc. Foi especial. Não mais que a inesperada rota pela costa do Dia D. Uma viagem que definitivamente todas as pessoas deveriam fazer.
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Aviso aos passageiros 1: O repórter Rafael Balago, da editoria de Mundo e responsável pelo blog Avenidas, da Folha, percorreu, de ônibus, o trajeto entre A Coruña, na Espanha, e Paris. Ele nos contou como foi essa viagem de 20 horas
Aviso aos passageiros 2: O professor de alemão e tradutor Guilherme Spinelli viajou de bicicleta pela Alemanha e escreveu como foi a pedalada