Leitor relembra a noite em que dormiu no Hotel Califórnia

Você lembra quando era comum pessoas irem a grandes aglomerações, como shows e eventos esportivos? Parece que faz décadas isso, não?

O jornalista Lima Medeiros nos traz um relato bem-humorado sobre a vez em que foi a um show do Eagles enquanto visitava sua filha em Portland, nos Estados Unidos.

Em tempos de coronavírus não podemos viajar, e muitas vezes nem sair de casa. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.

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A banda norte-americana Eagles, criada por jovens cabeludos do sul da Califórnia no início da década de 70, levou pouco mais de cinco anos para lançar seu terceiro disco, chamado “Hotel Califórnia”, cuja música-título catapultou o grupo para a primeira posição na parada da Billboard, mais precisamente em 7 de maio de 1977.

Embora aquela espécie de fusão entre country e folk não fosse minha vertente predileta do rock, seus riffs e acordes logo colaram nos ouvidos do pré-adolescente de 13 anos que habitava em mim e amava os Beatles e os Rolling Stones.

Muito tempo se passou desde aquela época até que, em agosto de 2014, já no figurino de um legítimo cinquentão, vivia os últimos dias de férias em Portland, em Oregon, na costa oeste dos Estados Unidos —para onde havia me deslocado em visita a Mariana, filha que fazia intercâmbio na universidade local—, quando descobri que a banda faria um show naquela noite, no Rose Quarter-Moda Arena, ginásio poliesportivo com capacidade para 20 mil pessoas, utilizado também para sediar os jogos de basquete do Portland Trail Blazers na NBA.

Sem conseguir arregimentar companhia para a expedição dinossáurica, parti no final de tarde para o local do show, já com ingresso e um bilhete do metrô de superfície no bolso. Cheguei com a antecedência necessária para um turista se achar em território estranho e, já no interior do Rose Quarter, me surpreendi com a estrutura que encontrei.

Um círculo de atrações gastronômicas e etílicas rodeava a área do espetáculo. Lógico que a segunda opção me atraiu mais. Porém, inadvertidamente em sentido anti-horário —acho que esse foi o problema— passei a me distrair com a degustação de boa parte das 37 draft beers disponíveis na área.

A empolgação foi tanta que não precisa ser vidente para prever o futuro da noite. Atrapalhei uns tantos até alcançar meu assento, incomodei outros para descobrir a ordem da set list —que teimava em não chegar sequer ao lobby do hotel tão desejado— até que do meio ao fim do programa meu ronco já se misturava ao som das guitarras de velhos cabeludos do sul da Califórnia.

Como num sonho, lembro vagamente da melodia daquela noite. “Welcome to the Hotel California. Such a lovely place (such a lovely place)”. De concreto, mesmo, só a mão no meu ombro e o recado do gringo: “Hey, man, you slept and lost Hotel California. The show is over. Now go home, okay !?”. De qualquer forma, poucos da minha geração conseguiram dormir uma noite no Hotel Califórnia.

Diálogo de surdos

Segui ao pé da letra a recomendação do “buddy” da arquibancada em voltar para casa na sequência. Apanhei o primeiro metrô que passou na frente do estádio e fiquei contente em vê-lo atravessar a Steel Bridge, pois havia passado por ali horas antes e isso indicava acerto na escolha do rumo.

A alegria durou pouco. Vencida a ponte, o motorneiro virou para a direita e a composição ganhou velocidade. Meu caminho, à esquerda, cada vez mais distante. Imaginei um balão, um atalho ou algo do gênero para me acalmar, mas isso só me afastava cada vez mais do destino.

Stop. Parei, saltei, atravessei a avenida e aguardei pelo próximo metrô no sentido inverso. Isso (quase) sempre deu certo, raciocinei. Um simpático desconhecido —sempre existe um— que me viu por ali tratou de avisar que, pelo horário, não havia mais condução naquela noite. Passava da meia-noite, é verdade.

Meu inglês macarrônico agora teria que entrar em ação, pois seria necessário arrumar um táxi e explicar ao motorista para onde precisaria ser levado. Minha filha já imaginava essa situação quando precavida colocou um papel em minha jaqueta com o endereço do seu apartamento, nas imediações da Portland State University.

Após uns 15 minutos de espera, finalmente consegui parar um táxi. Entrei e de cara achei que meu futuro estava garantido. O motorista, de turbante e barbas longas, mais parecia um consultor de tarô. Indiano, logo disse que sabia menos inglês do que eu e fazia uma semana que aceitara fazer um extra como taxista na cidade a que chegara não fazia dois meses. Pelo menos foi isso que entendi.

O papel que lhe passei com o endereço não fez muito sucesso, notei, quando passamos pela terceira vez na frente de uma mesma cervejaria, na Flanders Street. Infelizmente estava fechada. Interpretei como um sinal.

Nessa altura, o diálogo que se reproduzia no carro era cômico, não fosse trágico. Uma minitorre de babel ou, para ser mais contemporâneo, um petit comité da assembleia geral da ONU. Desculpem os inevitáveis clichês. Português, inglês, híndi e bengali, em qualquer de suas 400 variantes, das quais nenhuma delas entendo. Porém, nervos no lugar, a supremacia da ciência sobre o empirismo revelou-se salvadora.

Pedi o papel com o endereço ao nosso chofer da rodada, Manoj —segundo seu crachá de identificação—, e reparei que não havia referência explícita a universidade, mas sim ao nome da avenida onde se localizava o edifício.

“University, please! Portland State University! P-S-U!”. Ele captou a mensagem, finalmente, não sem antes dizer algo como “por que não falou antes…?”. Tirou onda na madrugada fria de Portland. Após um autêntico city tour, fui deixado no portão frontal da universidade, quase 1h30 da manhã.

Como não tinha rúpias, fui obrigado a deixar um punhado de sofridos dólares nas mãos de Manoj que, se me testou a paciência, trouxe-me para casa sem arranhões. Tempos depois, ao relatar esta história para um amigo de origem asiática, já no Brasil, este gargalhou ao me explicar que o nome do taxista, a partir do sânscrito e baseado na mitologia indiana, significa “aquele que compreende os outros”.

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Aviso aos passageiros 1: O blog Lineup, da Folha, cobre grandes shows e festivais de música no Brasil e no mundo. Mesmo durante a pandemia, há shows rolando na internet

Aviso aos passageiros 2: O Virgin Money Unity Arena, um festival no Reino Unido, reuniu o público em cercados para cumprir distanciamento. Será esse o novo normal?