Viajante reúne em livro relatos sobre Nagorno-Karabakh e outros ‘países que não existem’
O desconhecido Nagorno-Karabakh entrou recentemente no noticiário como palco de conflito entre a Armênia e o Azerbaijão, e essa tensão fez muita gente descobrir a região em terras azeris, mas controlada por separatistas armênios desde a década de 1990.
O escritor e viajante curitibano Guilherme Canever esteve lá em 2014 e viu de perto esse conflito congelado. “O que mais me chamou a atenção é que você está num lugar tranquilo e, perto dali, há uma cidade com prédios abandonados.”
O que o curitibano viu em Nagorno-Karabakh, Palestina, Taiwan e em outros sete destinos está no livro “Uma Viagem pelos Países que Não Existem”, lançado em 2016. A obra ganhou uma segunda edição saindo do forno, após um período esgotado. “Foi na época da Olimpíada do Rio, e todo mundo estava falando sobre países pouco conhecidos. Teve um timing muito bom.”
Ele tem outros três livros na carreira –“De Cape Town a Muscat: Uma Aventura pela África”, “De Istambul a Nova Délhi: Uma Aventura pela Rota da Seda” e “Destinos Invisíveis: Uma Nova Aventura pela África”–, mas foram os países que não existem que lhe deram repercussão internacional.
Custando até R$ 200 em sites de livros usados –“não compre porque não vale a pena”, brinca–, o livro do curitibano ainda não tinha uma versão em inglês. Estava difícil vencer a burocracia e a falta de intermediários no mercado estrangeiro.
Canever lançou, então, a versão estrangeira pela Amazon e em poucos dias a obra estava figurando na mídia de mais de 40 países. Para existir uma versão em espanhol foi um pulo e, com a pandemia, mais precisamente devido à falta de viagens nesse período, ele conseguiu revisitar a obra.
Ele chegou a fazer um financiamento coletivo, mas a empreitada funcionou mais como uma pré-venda e também uma divulgação de suas outras obras.
Abaixo, confira a conversa que tive com ele.
De onde surgiu a ideia de escrever livros?
Surgiu por acaso. Fiz uma viagem longa, entre 2009 e 2011, e tinha o hábito de anotar no caderninho. Mantive o blog, mas era algo bem amador. Quando voltei, as pessoas falavam “tem que publicar um livro”, e alguém disse que quase que não seria justo eu não fazer isso, já que tem tanta gente que não tem oportunidade de viajar, de ir para lugares que eu fui. Se já não é fácil para todo mundo viajar, imagina para destinos um pouco mais inacessíveis.
E esse livro sobre os países que não existem, como surgiu?
Foi resultado de diversas viagens em alguns anos. O livro entra nesse conceito de países que são de fato independentes, mas não têm um reconhecimento internacional muito amplo. Foi o primeiro país, a Somalilândia, que plantou a semente desse projeto.
Para fazer compras precisava usar o xelim somalilandês (a moeda própria), para ir a algumas regiões eu precisava de um permit, que é uma permissão por escrito do governo, então precisava ir a órgãos governamentais. Nem nações não reconhecidas reconhecem a Somalilândia. Eu achei fascinante, e passei a me questionar o que é um país.
As Nações Unidas tem os 193 membros e outros 2 estados observadores permanentes, mas e os outros que se dizem país, mas não são? Visitei outros dois países assim, Palestina e Saara Ocidental, e aí criei o projeto para conhecer os demais lugares.
Como foi em Nagorno-Karabakh?
No livro eu chamo de conflito congelado, e a gente sabe que pode se descongelar a qualquer momento. Desde minha experiência até agora, durante vários anos tiveram algumas trocas de tiro, derrubavam um helicóptero, mas agora teve uma escalada de violência muito grande.
Cheguei não pelo principal caminho, o corredor Lachin, mas pelas montanhas, uma estrada de terra que estavam abrindo. Não tive nem controle de passaporte, passei como se fosse um estado da Armênia.
O interessante é que Nagorno-Karabakh é um encrave, mesmo que seja internacionalmente reconhecido como Azerbaijão. Para ir até lá, precisa passar por áreas azeris, que hoje estão ocupadas pelos armênios, uma das grandes contestações do Azerbaijão.
Chegando pelas montanhas da região norte, tudo calmo, montanhas, monastérios, começa a ver alguns tanques abandonados na beira da estrada, com pequenos memoriais de guerra, com fotos de soldados mortos. Sente que se teve uma tensão recente.
Mais ao sul, próximo a outro monastério, tinha uma parede com dezenas, talvez centenas de placas de carro do Azerbaijão. Eles recolheram e fizeram um mural, um troféu. Quando desce as montanhas para Stepanakert, a capital, tem cabos de aço entre as montanhas, para os aviões não voarem muito baixo.
Na cidade você faz o visto, vai no Ministério das Relações Exteriores, relativamente simples, não colam no passaporte, para não impedir a entrada no Azerbaijão. Stepanakert é tranquila, com blocos soviéticos, muito florida, tem wi-fi gratuito na praça, você consegue sentar e tomar uma cerveja. Há uma sensação de paz.
O que mais me chamou a atenção é que você está num lugar tranquilo e, perto dali, há uma cidade com prédios abandonados. Tem um conflito um pouco mais vivo.
Para chegar em Agdam, passa-se por largas avenidas, com bandeiras de Nagorno-Karabakh, com monumentos de cunho nacionalista. Era uma cidade azeri, inteira devastada, em ruínas, tudo saqueado. A única estrutura que está de pé é uma mesquita, com seus minaretes (torres). Foi muito difícil chegar lá porque ninguém queria nos levar. É a linha frente do conflito, precisamos desviar de alguns postos de controle, da patrulha de Nagorno-Karabakh, com soldados armênios.
A poucos quilômetros dali se pode tomar cerveja, mas pode mudar de cenário completamente, que gerou milhares de refugiados.
Em meio ao mercado livreiro em crise, o que te levou a lançar essa 2ª edição?
Foi o livro que teve a resposta mais rápida. Foi na época da Olimpíada do Rio, e todo mundo estava falando sobre países pouco conhecidos. Teve um timing muito bom.
Esgotou relativamente rápido, mas eu estava focado no “Destinos Invisíveis”. Passava muito tempo fora do Brasil viajando, escrevendo. Para lançar uma 2ª edição achava que não valia a pena.
Em alguns momentos as pessoas encontravam viajantes de outros países que comentavam sobre minha jornada. Eu busquei publicar o livro em inglês, mas é um processo muito difícil lançar lá fora, sempre falavam que deveria ser por uma editora brasileira. Contatei empresas grandes, mas foi complicado.
Depois de uns anos, continuei tendo notícias de pessoas que comentavam sobre a obra. Aí fiz a tradução para o inglês e lancei via Amazon, de forma independente. Teve uma repercussão muito boa.
Lancei em 4 de julho, na Independência dos EUA, para ter uma referência com os países que são de fato independentes mas não reconhecidos. Funcionou de maneira bem espontânea. Dois dias depois estava na CNN internacional, e teve matérias na Índia, França, Argentina, Vietnã, mais de 40 países noticiaram o livro. Acabei traduzindo para o espanhol também.
Para uma segunda edição brasileira, sempre me pediam, mas nunca tinha me acertado. Isso criou uma demanda, via em sites que tinha edição usada custando R$ 200. Até brincava “não compre porque não vale”. Na sequência do lançamento internacional, achei que estava na hora de fazer mais uma tiragem. E, como não estou envolvido com viagens por causa da pandemia, resolvi focar outra edição.
Como é seu processo de escrita?
Eu escrevia na forma de diário, e no começo eram textos mais longos. Com o tempo passei também a fazer notas de experiência.
Coloco opinião pessoal, mas acabo falando menos sobre mim, gosto de apresentar os lugares. A diferença para um guia é que não é simplesmente o que se tem pra fazer lá, eu conto minhas experiências, positivas ou negativas, mas relato o dia a dia.
No meu primeiro livro, quando falo das igrejas de Lalibela (Etiópia), faço em duas ou três linhas, mas quando vou escrever sobre uma carona de caminhão, é um parágrafo. Acaba valorizando mais minha experiência do que o local em si.
As grandes atrações do país você encontra num guia, na internet, agora, como chega, o que faz, torna a viagem única. As viagens se desenrolam de maneiras diferentes quando você está na estrada. Os acasos são os temperos de qualquer viagem.
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Em tempos de coronavírus nossas viagens ficaram mais restritas. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.
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Aviso aos passageiros 1: O paulistano Rafael Dallacqua viajou por vários lugares do mundo, e aqui contou como foi o período em que esteve nos Bálcãs. Entre os locais por onde passou está Kosovo, outro país que não existe.
Aviso aos passageiros 2: Reuni algumas dicas para fazer seu primeiro mochilão. Inclusive, relato como foi a minha primeira viagem com a mochila nas costas e todos os perrengues no livro “Embarque Imediato” (O Viajante, R$ 39,90, 180 págs.)