Expedição para o Pico da Neblina tem trekking de muitos dias no meio do mato
O Pico da Neblina, no Amazonas, é o ponto mais alto do Brasil, com 2.995,3 metros, segundo medição de 2015 do IBGE. E o vizinho dele, o Pico 31 de Março, é o segundo mais alto, com 2.974,18 metros.
Subir até seu cume não é uma tarefa fácil. O caminho envolve muitas horas em um barco e muita caminhada no meio da floresta amazônica. Sem falar que o espaço está fechado desde 2010. Ele seria reaberto para visitação no início de 2020, mas aí surgiu a pandemia e os planos estão suspensos.
A leitora Beatriz Pianalto de Azevedo, que já escreveu ao blog sobre suas viagens a Guiné-Bissau e ao Butão, enviou um relato minucioso sobre sua expedição ao ponto mais alto do país.
Ela esteve na região em fevereiro de 2010 e contou com a companhia de outros três viajantes. Tire um tempinho para ler seu texto, cheio de detalhes e que te transporta ao meio da floresta.
Em tempos de coronavírus nossas viagens ficaram mais restritas. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.
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A mítica floresta amazônica, confesso, nunca me atraiu muito. O motivo? Atribuo ao brilho em cinemascope das florestas hollywoodianas e a seus musculosos Tarzans, pipocando de árvore em árvore, o furto da atenção com a prata da casa.
Exatamente por isso, a escolha do meu roteiro de férias resulta não só de uma obrigação moral de conhecer o norte do Brasil como a oportunidade de praticar um de meus esportes favoritos, o montanhismo.
Afinal, é lá, na porção noroeste do estado do Amazonas, que se encontra o pico mais alto do Brasil, o Neblina, com 3.014 metros. Cumpre esclarecer que mensuração posterior à sua conquista, em 1965, pelo topógrafo Jose Ambrosio Miranda Pombo, fixou sua altitude em definitivos 2.995,3 metros.
Decolo de Porto Alegre em fevereiro de 2010, com troca de aeronave em São Paulo e dali embarcando para Manaus onde, no dia seguinte, pego um avião turbo hélice da Trip até São Gabriel da Cachoeira, ponto de partida de nossa pernada.
Quando as densas nuvens permitem, surgem flagrantes da floresta amazônica. Emociono-me com aquele cerradíssimo colchão verde, formado por altas copas de árvores.
Não observo durante os 858 km percorridos quaisquer rasgos de clareiras, a não ser o brilho prateado e sinuoso do rio Negro de onde despontam ilhas de areia cuja coloração branquíssima quebra vez por outra a hegemônica tonalidade verde escura da floresta.
E recebo meu primeiro impacto ao descobrir muitas pedras em seu leito! Sei lá por que sempre imaginei os rios amazônicos desatravancados de rochas, ou seja, rios de planícies. Associo rios rochosos àqueles que descem de serras e montanhas. Tão ignorante euzinha…..tsc tsc!!
Como seu nível de água nesta época do ano está baixo, o pedrario aflora à superfície. A lindíssima serra Bela Adormecida chama minha atenção e, quando chego ao modesto aeroporto de São Gabriel, Branco, dono da agência Amazonas Neblina Tour, responsável pela expedição, comenta que a serra é chamada assim porque seu formato se assemelha ao de uma mulher deitada de barriga para cima.
Brincam os gabrielenses que a donzela, quando a névoa a encobre, foi dar um rolê para tomar café. Tão fértil o imaginário popular, não é mesmo?
Logo de cara gosto da cidade, situada à margem do rio Negro. Afoita e curiosa, largo minha bagagem no hotel Deus Me Deu. Branco nos leva para jantar na praça de alimentação repleta de barracas onde são vendidas, além de carne e galinha grelhadas, acompanhadas com arroz, feijão, massa e salada, a quinhapira (quinha: pimenta; pira: peixe).
De origem tukana, neste caldo, cujo ingrediente básico é o tucupi (líquido extraído da mandioca), o peixe é cozido. Acompanha, ainda, um redondo biju, pão feito com goma e massa de mandioca, que se mergulha no apimentado caldo.
O peixe de hoje é piau (bem espinhento), mas também se usa aracu e piraíba, igualmente repletos de finas espinhas. Todo o cuidado é pouco quando se come tais tipos de animal.
Conheço, então, nosso guia, Pepe, logo por mim alcunhado de Legal. E Traíra, um garimpeiro contador de histórias fantásticas que me deixam de boca aberta. Nem todas, segundo Branco, lá muito verídicas. Como todo mentiroso, é simpaticíssimo. A noite não poderia ter terminado em melhor companhia.
São Gabriel da Cachoeira
São Gabriel possui um comércio forte, motivo pelo qual colombianos e venezuelanos das cidades fronteiriças, distantes 300 km, vêm aqui se abastecer. Navega-se até esses dois países, rio Negro acima, em uma viagem com duração em torno de 5 horas quando o rio está cheio. Já com o rio na vazante, como agora, o percurso gira em torno de 12 horas.
A Colômbia localiza-se na margem direita do rio Negro, ao passo que, na esquerda, queda-se a Venezuela. São Gabriel tem 23 etnias e a população supera os 40.000 habitantes, sendo que 90% da população é indígena. Assim, é natural ouvir os nativos conversando tukano, baniwa, yanomami ou trovando em baré.
Uma lei municipal instituiu as línguas tukano, baniwa e nheegantu (língua geral) idiomas oficiais além do português. Desta forma, o município tornou-se o único do Brasil com quatro idiomas oficialmente reconhecidos.
Essa região assenta-se no planalto das Guianas, cujo embasamento de rochas cristalinas apresenta-se recoberto por material sedimentar. Sua vegetação é considerada mata de terra firme, porque situada em altitude superior aos 300 metros acima do nível do mar.
À leste, a serra da Bela Adormecida; à oeste, a do Cabari, outra belezura; ao sul, o rio Negro com suas ilhas e baixios, revelando porções generosas de rochas e faixas de fina areia esbranquiçada. Suados da caminhada, terminamos o passeio, tomando banho no rio Negro cujas águas tépidas são de uma tonalidade caramelada.
Sua coloração escura deve-se à decomposição da matéria orgânica vegetal oriunda das camadas de folhas e restos de animais mortos (serrapilheira) arrastados até seu leito pelas inundações que ocorrem no período de julho a novembro. Indiozinhos aproveitam as corredeiras e nadam, com destreza, até os remansos. Coisa boa este lugar!!
Almoço no mercado onde mais uma vez provo a quinhapira em cujo caldo boia o piraí, peixe menos espinhento que o piau, embora tenha couro. A dona da banca explica que só se come ele filhote e preparado em caldeirada porque sua carne não presta para ser grelhada ou frita.
Distingo na já não tão incipiente penumbra de final de tarde, lá embaixo, no leito do rio Negro, várias ilhas rochosas onde famílias indígenas, vindas de suas aldeias, preferem acampar a permanecerem na cidade. Que mundo este! Um misto de modernidade, guardando, contudo, resquícios de muita primitividade. Estou deslumbrada, gamada por esta cidade!
Subindo rio Cauaburis
Dia seguinte, um sábado, tem início a grande aventura com 11 dias de duração. Por pouco não acontece, já que o Parque Nacional do Pico da Neblina, território pertencente aos yanomamis, foi fechado em janeiro devido a divergências entre ICM-Bio e os indígenas.
Somente no início da tarde, após muito conversê com as autoridades, deixamos São Gabriel, mal acomodados na carroceria de um toyotão bandeirantes rodando pela BR-307 rumo ao km 85 do Parque Nacional do Pico da Neblina, onde embarcaremos em uma voadeira rumo à boca do Tucano, um dos igarapés que alimenta o rio Cauaburis, afluente do Negro.
Chegamos após 3 horas de viagem ao local onde está estabelecida a comunidade Tucana Yá-Mirim. Acampamos ali, porque a navegação no rio Cauaburis torna-se bem arriscada durante a noite em época de seca, devido à enorme quantidade de pedras e troncos espalhados ao longo de seu leito. As redes são armadas sob um telheiro de zinco. Tenho como companheiros de aventura Lili, Marcelo e Eli.
Dia seguinte, embarcam conosco na voadeira 5 yanomamis. Seu destino é a boca do rio Maturaká onde terra adentro há uma aldeia com 2.000 habitantes. Para visitá-la, só com convite do cacique Joaquim. Armindo, piloto yanomami experiente, atravessa, sem maiores problemas, nas duas primeiras horas iniciais os igarapés Yá-Mirim e Yá-Grande até desembocar no Cauaburis, rio que coleta vários igarapés, dentre eles os dois que deixamos para trás.
Como o rio se encontra na vazante, afloram em seu leito uma infinidade de rochas, troncos e galhos de árvores caídas nas margens, muitas delas arrastadas para o meio de seu curso, dificultando a navegação. Em certos trechos, a lâmina d’água não ultrapassa 50 cm e escuto o raspar da quilha do barco na areia do leito do rio.
Em certos trechos, nota-se, nitidamente, que os barrancos das margens não são formados apenas por areia mas entremeados por camadas de folhas. Uma chuva forte, cuja duração não excede mais de 15 minutos, obriga-nos a usar uma lona azul como proteção.
Eli usa a perna como estaca, impedindo que a proteção de plástico nos sufoque. Fumacinhas de evaporação evolam-se do rio após o chuvaral. Tô tão feliz, mas tão feliz que bate até um medinho bobo. Vá que meu coração estoure de tanta alegria!
No meio da tarde, eis a magnífica serra do Opota (“opo”, em yanomami, significa tatu; “ta”, serra), vulgarmente apelidada de serra do Padre. Tal denominação irrita os índios. Como explica Junior, primo de Armindo, “nós estamos aqui muito antes desses padres”.
E não para mais o festival de serras que se sucedem umas às outras, sobressaindo na paisagem a do Baruri, em cuja retaguarda se esconde o mítico Yaripo, ou pico da Neblina, e a do Pirapucu. Revelam, ao contrário da maioria das outras serras, extensos trechos de paredões pelados de vegetação.
Mais adiante a verdejante serra do Barro e a do Jordão, nascente do igarapé de mesmo nome, cujas águas claras e frias encontram um contraponto nas escuras águas do Cauaburis.
O Opota, já imerso no lusco-fusco da tarde que cai, brinca de esconde-esconde nas mis curvas traçadas pelo rio. Já é noite quando aportamos em uma prainha onde há um sítio de propriedade de duas famílias de yanomamis.
Deise, a yanomami que vem de carona conosco na voadeira, traz um prato com carne de tatu e tucumã. Provo o tucumã, de textura meio farinhenta. Nada de muito interessante seu gosto. Duas índias trazem cestas de cipós para vender. Sobre a fogueira uma panela de arroz com linguiça será nossa janta.
Após a refeição, sentados em canoas emborcadas, conversamos e fumamos cigarrinhos. Boa demais essa vida, não fossem as mariposas noturnas que teimam em visitar o interior dos meus olhos quando acendo a lanterna.
Os índios preparam a brejera, fumo misturado com cinza, algodão e água, colocado entre o lábio e o maxilar inferiores. Em linguagem yanomami significa “pee” (tem til nos 2 “e” mas o teclado, bem burro, só aceita em cima do “o” e “a”). Servem-se dela para mitigar a fome.
Originários da Venezuela, o povo yanomami adentrou o território brasileiro, espalhados hoje em dia por Amazonas e Roraima. Há diferenças de sotaque conforme a localidade onde estão arraigados. Seu idioma, meio anasalado, lembra na cadência o chinês.
Aprendo algumas palavras da língua local como “parika” (bebida alcoólica preparada pelos pajés para cerimônias especiais), “sua” (mulher), “xita” (homem) e “naka” (irmã). Tal tradução é reducionista porque cada vocábulo tem um significado bastante elástico. Quando tento falar seu difícil idioma, corrigem com energia minha péssima pronúncia.
Cachoeira do Tucano
Partimos cedinho do acampamento montado na prainha às margens do Cauaburis e chegamos à boca do Maturaká após uma hora de navegação, lá ficando enquanto Arlindo leva os cinco yanomamis à aldeia.
Aproveito e me refresco do calor, mergulhando na fresca água cor de caramelo do igarapé Maturaká cuja nascente é no pico da Neblina. Borboletas amarelas, azuis e vermelhas descansam na areia branca da praia.
Enquanto esperamos o retorno de Arlindo, Pepe Legal explica que para caçar onça os yanomamis matam um macaco e levam o bicho no ombro para atrair o felino. Alguns, mais desavisados, são mortos porque não percebem a fera se aproximando. Apenas a espingarda largada no solo indica que um dia alguém a carregou.
Às 10h, um barulho de voadeira anuncia a chegada de Arlindo e Messias. Embarcamos e lá vamos para a Boca do Tucano (boca significa foz aqui no Amazonas), afluente do Cauaburis, cuja nascente também se localiza no Neblina.
Chegamos à Boca do Tucano às 12h50, depois de navegarmos 280 km. Devido ao pouco volume d’água do igarapé Tucano, somos obrigados a saltar da voadeira e caminhar uns 200 metros ao longo de seu leito até o local onde há duas palhoças, sem paredes, uma com teto de palha e outra, menor, protegida com lona azul.
Messias, um jovem yanomani de 22 anos, muito faceiro, será meu carregador e quem me dirá as horas, porque a pilha do meu relógio acabou. Todos os carregadores acomodam a bagagem, comida e utensílios em umas cestas –os jamaxis– tecidas com uma fibra de cipó titica, super resistente.
Pepe, nosso guia, é paraense de Santarém. Negro, alto, magro, é super gente boa, prestativo demais. Eu o apelidei de o incansável e sacana Pepe Legal. Sacana porque é matreiro e femeeiro demais. Haja vista a história que nos contou de um sonífero que dava para a ex-mulher quando queria sair para farra.
Esses homens, embora safados, têm lá o seu charme! Os outros carregadores são Orlando, Delegado, Bosco e Auderiano, todos yanomamis. Saímos da Boca do Tucano, chegando no Pau da Arara no meio da tarde, onde descansamos. Tomo banho no córrego porque o calor deixou meu corpo encharcado de suor.
A trilha, bem marcada, é coberta de folhas secas. Muitas helicônias embora tenham as folhas maiores que as existentes na mata atlântica, exibindo contudo florescência bem mais modesta.
A trilha de hoje é plana, chão forrado de folhas secas e muita raiz de árvore espalhando-se com gosto pelo chão. É uma floresta tropical fechada, com pouca penetração da luz solar, formada em boa parte por árvores de grande porte, de troncos finos, embora uma ou outra apresente-o largo e grosso, como a sapucaia.
A floresta amazônica, infelizmente, sofre o ataque predatório dos biopiratas que obtêm ilegalmente amostras de plantas e animais com o objetivo de desenvolver diversos derivados, registrando suas patentes cujos lucros, nem preciso dizer, são bilionários. E quando tal acontece, nós temos de pagar para utilizar algo cuja matéria-prima é originária de nosso país….dá para acreditar?
Nossa próxima parada é o Polar onde um córrego de águas rasas mal permite um mergulho. O lugar assim é chamado devido à farra que os garimpeiros faziam indo ou voltando do garimpo, enquanto reabasteciam as energias bebendo uma breja.
Daqui até a cachoeira do Tucano mais meia hora, em um total de aproximados 7 km. Na cachoeira do Tucano, duas casinhotas de palha onde habitam três famílias yanomamis. Nessa época do ano, elas se mudam para Maturaká porque as aulas das crianças já iniciaram. Cultivam mandioca, pupunha, banana, laranja e macaxeira.
Nosso acampamento está do outro lado do igarapé Tucano, onde encontramos garimpeiros deitados em redes. Destaca-se, entre eles, o mulato Carioca, que me chama, gentilmente, de madama. Maranhense, costuma garimpar ouro na Venezuela, pois no parque atividades de mineração estão proibidas. A viagem dura 4 dias no meio da selva.
Carioca me ensina que carapanã é o mosquito que ataca de noite e pium de dia. Acompanha-o Dark, assim chamado porque reluz de tão preto. O rapaz arde em febre e Carioca diagnostica que a causa é o siso que arrancou em Maturaká. Acho estranho e digo que extração de dente não provoca febre, deve ser malária. Carioca teima, afirmando que não é malária, não. Assim, deixo quieto o assunto.
Com pena, dou-lhe um Tylenol (se mercenária fosse, poderia ter trocado o antitérmico por uma pepitinha do dourado metal, pois remédio aqui vale ouro). Quando retornamos a São Gabriel, Dark que lá se encontra confirma que, de fato, está com malária. Até que para uma profissional do direito sou uma boa médica, hein?
Bebedouro Novo
Saída às 8h do acampamento na cachoeira do Tucano cuja altitude é de 106 metros. Agora a coisa complica porque se começa a subir, portanto teremos trilhas íngremes. Até o Bebedouro Velho são 470 metros de desnível e deste ao Bebedouro Novo mais 400 metros. A trilha mantém-se coberta de folhas secas e raízes.
Uma subida com uma pegada forte, um trecho plano, uma descida e assim vamos até a Bebedouro Velho onde há pequeno poço que se alcança após descermos uma senda com forte declividade. Lá nos abastecemos de água. Estou usando cloro, por precaução.
O Exército tentou construir um posto neste sítio mas os yanomamis não permitiram, motivo por que só há a fundação de cimento e abandonadas, num canto, estacas metálicas já enferrujadas.
Daqui se avista outro ângulo da serra do Baruri com seus paredões pelados. Uma pena que a névoa que a envolve não permita uma boa foto. O ruído feito por certas árvores muito altas, como a peroba, lembram roncos de animais. Uma coisa impressionante.
Estamos caminhando 1 hora e descansando 15 minutos. Assim, paramos na Boca do Gavião, porta de entrada para a serra de mesmo nome onde, segundo Pepe, houve atividades de garimpo quando a mineração ainda não era proibida por essas bandas.
Agora o caminho se faz plano, sem muitos obstáculos até a Cutia, aonde chegamos depois do meio-dia. Uma breve parada para que os yanomamis possam se aliviar do peso dos jamaxis.
Pepe Legal joga em três posições: é guia, carregador e cozinheiro. Considerando a limitação da comida oferecida (arroz, massa, feijão e calabresa), consegue torná-la apetitosa. Pode ser também que a fome seja o melhor tempero, porque, após uma dura caminhada, essa é a única refeição decente do dia, haja vista que o desjejum consiste de mingau de aveia, leite, café e bolacha e o almoço, de uma frugalidade franciscana, compõe-se das indefectíveis bolachas regadas a suco artificial.
Depois de uma subida mais áspera, largamos as mochilas e nos sentamos para almoçar no paradouro do Macaco aonde chegamos às 14h. Quando a gente para, pequenos insetos, atraídos pelo odor de sal destilado pelo suor, entram nos olhos… um saco! Após o almoço, nova subida, cujo aclive é mais empenado que o da etapa anterior, até o próximo paradouro, o Bebedouro do Romualdo.
Faço uma pausa para apreciar uma interessante formação rochosa que lembra as patas de um leão sob uma concavidade rochosa coberta de limo bem verdinho. Pepe Legal aponta a paxiúba, uma palmeira de tronco fino com raízes aéreas formando como que um tripé com várias pernas. Daí a lenda de que essa árvore anda pela mata, segundo contam os yanomamis. Seu tronco cheio de espinhos é usado para ralar a mandioca.
Às 17h chegamos, enfim, ao Bebedouro Novo, em uma trilha pontuada mais por subidas que descidas, entremeada por curtos trechos planos. Afinal, foram 9 horas caminhando. Somos, porém, recompensados pela visão da face sul do Pico da Neblina, em formato de pirâmide, e a do 31 de março, cujo cume, bem sem graça, é achatado.
Fazendo jus ao nome, o topo do Neblina encontra-se envolto por filamentos de nuvens que, não obstante, permitem seja ele razoavelmente visualizado. Perpendicular a esses dois picos, localiza-se a serra do Camelo, uma formidável estrutura rochosa cujo formato lembra o daquele animal. Exibe em seu escuro paredão sul zonas peladas cuja tonalidade clara evidencia a cobertura de líquens brancos.
Mas os encantos do Bebedouro Novo não param por aqui. O rio Cuiabixi, cuja cabeceira nasce na Venezuela, passa a 200 metros do acampamento e para lá nos dirigimos. Suas águas frias e límpidas são um convite ao banho depois da longa pernada sob a tórrida temperatura que enfrentáramos ao longo do dia.
O rio me faz lembrar daqueles que atravessam os canyons de Praia Grande (SC), famoso por seus impressionantes peraus. Por entre as inúmeras pedras arredondadas que adornam seu leito, eis uma cascatinha, formando deliciosa piscina de hidromassagem onde, imersos, Marcelo e eu relaxamos, deixando jorrar o forte jato d’água em nossas maltratadas costas.
Após a janta, já acomodados em nossas redes, peço a Pepe que conte uma de suas histórias. Ele não se faz de rogado, acomoda-se melhor em sua rede e, com seu sotaque gostoso de nortista, conta o causo de um certo general que resolveu oferecer um piquenique a sua mulher e filha no topo do Neblina. Para tanto, deslocou de São Gabriel um pequeno contingente de soldados como suporte a tal festim. E Pepe, malicioso, acrescenta que a comilança tinha do bom e do melhor. Até uva, gente!
Pego então meu saco de dormir, pois uma aragenzinha fria se faz sentir. Afinal, estamos a 870 metros acima do nível do mar. Não demoro muito e logo pego no sono, embalada pelo conversê dos yanomamis naquela sua estranha e difícil língua e pela cantoria dos sapos. E vá dizer que não é bom esse tipo de indiada?!!
Acampamento-base
Espreguiço com vontade e pulo da rede. O dia lindo, aquele azulão no céu. Beleza pura quando olho para o pico da Neblina e para serra do Camelo: ambos, desembaraçados de nuvens, podem ser avistado nos mínimos detalhes: o paredão sul do Neblina esbranquiçado de líquens e o paredão sudeste do Camelo, igualmente, coberto por essa associação de fungos e algas. Devido à localização, ambos mostram pouca vegetação, motivo por que a rocha se apresenta bem exposta.
Deixamos Bebedouro Novo passando por Pau do Breu, assim apelidado por causa de uma resina, excretada por certas árvores, empregada na vedação de utensílios e canoas. Devido ao seu odor, é usada como defumador e repelente de mosquitos. Afora isso, a textura gosmenta do pau de breu impede que formigas façam ninho em seus troncos.
Há outras árvores, cujas vagens também destilam substância gosmenta, cor de caramelo, de uma textura de látex, para se proteger de formigas e cupins. Essa natureza não prega prego sem estopa!
Do paradouro do Pau do Breu até o do Campeão, onde chegamos às 11h05, há uma descida com declive bem acentuado que exige cuidado por causa das folhas secas que, se a gente bobear, faz com que o tombo seja certo. Depois, uma íngreme subida morro acima facilitada pelos degraus naturais que se formam no solo.
Há muitos animais de caça por aqui. Não faltam tatus, capivaras, antas e mutuns, cujas penas são retintas de tão pretas. Segundo Messias, sua carne é melhor que a de frango congelado. Ao longo do caminho encontrei várias dessas penas, sinalizando que alguns yanomamis por aqui estiveram caçando.
Descansamos um pouco no Campeão onde Pepe fica contando causos até a hora de retomarmos a caminhada. A trilha, inicialmente, é uma subida, seguida de uma descida, nova subida bem empenada e um trecho plano de curta duração. O restante da trilha é só aclive até o paradouro Laje, cuja altitude já soma 1.700 metros.
Pepe explica que a serra por onde subimos fica entre o maciço do Neblina e a serra do Barro. E fico alucinada pela belíssima semente de macaco cujo pedúnculo amarelo lembra uma minicenoura, encimada por um broto verde com formato de castanha do caju.
E não só esta semente me deixa deslumbrada. A redonda cunuri, de um marrom luzidio e tessitura suave, no seu interior, exibe uma coloração verde-pistache. Um encanto os líquens brancos, amarelos e vermelhos, agarrados aos troncos de árvores caídos na trilha. São um contraponto colorido ao predominante verde-escuro da mata.
Almoçamos a frugal refeição composta de bolachas e suco. Ainda bem que trago uma mistura de nozes, castanhas do Pará, de caju e amêndoas. O Laje deve tal nome a um lajedo de rochas cobertas de limo escorregadio. Daqui para frente, tem início um trecho pedregoso, estreito, tipo canaleta. Porque se está caminhando dentro de uma mata muito fechada, as pedras e as árvores estão revestidas por musgo.
O caminho, muito empenado, exige que se use as raízes como agarras para subir. Até então isolados no interior de uma mata compacta, com pouca penetração de luz solar, formada por árvores de grande porte, a vegetação cede lugar a um habitat povoado por uma infinidade de bromélias, arbustos e palmeiras. Pequenos veios d’água brotam no terreno pedregoso.
À medida que se ganha altitude, entramos em uma zona em que a claridade começa a dar o tom. Um corredor de palmeiras e bromélias precede a nossa chegada ao Mirante aonde chegamos às 16h. Essa região apresenta uma crista quase contínua de serras, destacando-se dentre elas a do Imeri, onde estão o Neblina, o 31 de Março e o Camelo.
A visão subjacente do vale, das serras e dos picos a perder de vista é espetacular. Dois picos, porque mais altos e pontudos que os outros, destacam-se ao sul: Brás de Aguiar e Guimarães Rosas. O primeiro tem o cume em forma de pirâmide, já o segundo o tem mais achatado.
A nordeste o largo platô da serra do Barro, avistada durante a navegação no Cauaburis, embora se apresente sob outro aspecto. A altitude beira os 2.120 metros. As nuvens projetam zonas de sombra no verde compacto da floresta situada bem abaixo de onde estamos.
Pepe aponta a serra pela qual subimos, coberta de uma vegetação compacta até chegarmos a essa zona aberta, ensolarada, tão distinta da mata cerrada pela qual até bem pouco trilhávamos. Do Mirante até o acampamento-base levei uma hora e meia porque parei para fotografar e apreciar a vegetação bem distinta daquela até então percorrida.
No solo pedregoso distingo, entre outras pedras, granito branco. Os elegantes açaís destacam-se no azul do céu. Água escorrendo entre as pedras formam pequenos poços de água bem clarinha, evidenciando sua origem calcárea. As agora onipresentes bromélias são figurinhas fáceis.
Depois de um desnível de 120 metros, chega-se ao acampamento-base às 17h30, plantado às margens do córrego Tucano. Como estamos em uma época de pouca chuva, escorre por entre seu leito pedregoso um fio de água cristalina e fria.
Daqui, avista-se outra perspectiva do Neblina e do 31 de março. São seus paredões noroeste que se exibem, infelizmente, ofuscados por nuvens. Bem em frente ao acampamento, a serra do Montilla e ao longe a do Baruri.
O rango, para variar, vai ser massa com, tchan tchan tchan, molho rosé. Lili faz um arranjo com maçarandubinhas (flores secas cujo formato lembra uma rosa, embora de uma coloração amarronzada) para enfeitar nossa mesa, que nada mais é do que uma lona estendida no chão.
Sobre a fogueira, feita com galhos e pedaços de madeira que os índios recolheram, pendem as borbulhantes panelas. Nosso incansável guia, Pepe Legal, desdobra-se em dois. Não, três. Enquanto cozinha, arruma as redes para nós e, ainda, busca algum remédio na ambulância, como é chamada a branca caixinha retangular de primeiros socorros.
Tão bom tudo isso: o ruído de água escorrendo entre as pedras do córrego, os pios dos pássaros se recolhendo para os seus ninhos e as risadas dos índios, provavelmente, zombando de nós, os caras-pálidas, enquanto a lua crescente desponta no céu estreladíssimo.
Topo do Neblina
Acomodadas em um pequeno espaço, as redes tiveram de ser colocadas bem próximas umas das outras, o que impediu que eu me esticasse confortavelmente. O resultado foi uma noite mal dormida, custando horrores a pegar no sono.
Se preguei olho 3 horas foi muito, razão por que desperto às 6h30, sem, contudo, sentir vestígio algum de cansaço. Afinal, hoje é o dia do ataque ao cume do Neblina e a adrenalina corre lépida e faceira através de minha corrente sanguínea. Vejo que o tempo está nublado…hum….só falta chover durante a subida, meu jesus cristinho!!
Nem bem expulsara tais presságios negativos, um leve chuvisco dá o ar da graça. Entretanto, graças ao bom São Pedroca, é de pouco monta: molha apenas carrapato, hehehe. Um pouco depois das 8h o céu começa a desanuviar, mantendo-se levemente toldado quando partimos.
Auderiano, Delegado e Messias nos acompanham. Perto do acampamento-base, fundas escavações denunciam a existência de um garimpo velho, detonando o terreno circundante.
A primeira parte da trilha até o igarapé do Tucaninho se faz atravessando um brete enlameado. Já sabia de sua existência e por isso comprara umas lindas botas sete-léguas bicolor azul e laranja. Nem foi preciso, contudo, calçá-las. Minhas botas de trekking deram conta do temido lamaçal.
Bromélias mis e musgo, muito musgo recobrindo os troncos das árvores. Quando já envelhecida, essa vegetação tão verde quando jovem adquire uma tonalidade ferruginosa.
Dois bacuraus (também conhecidos como curiango ou noitibó), ave que guarda certa semelhança, não só na aparência como nos hábitos noturnos, com a coruja, encontram-se, placidamente, pousados em uma pedra. Alimentam-se de insetos, como traças e mosquitos, motivo por que voam baixo. Foi a única ave que nem se abalou com nossa presença.
Brota uma quantidade variada de flores nesse trecho, destacando-se lindos cachos de orquídeas de variadas colorações e numerosos espécimes de plantas carnívoras. Ao chegarmos ao Tucaninho, abastecemos nossas garrafas nas águas avermelhadas embora claras deste igarapé.
Do céu, que se tornou densamente nublado, começa a baixar uma bruma que encobre o paredão noroeste do Neblina cuja coloração escura transmite uma sensação de clausura. Já se começa a sentir um ar fresco e visto uma camiseta de manga comprida.
Do igarapé do Tucaninho até o Mirante é puro trepa-pedra. Uma sucessão de lances rochosos, em número de seis, exige o uso de corda para ajudar tanto na subida quanto na descida. À medida que se ganha altura, avista-se outra serra, a do Ouro, deixando entrever, entre a vegetação que reveste seus paredões, trechos de arenito avermelhado.
Uma mancha branca, no meio da vegetação que reveste o vale situado 600 metros abaixo, denuncia um garimpo velho, justo no sopé da serra do Ouro. O ruído matraqueante das araras canindés, cortando o cinzento do céu, é o único barulhinho bom que se escuta.
Do Mirante até o topo, mais trepa-pedra que dispensam o uso de corda, salvo um mais empenado próximo ao topo. A vegetação, até então abundante, rareia a olhos vistos e quando estamos a justos 200 metros do topo apenas gramíneas crescem entre as escuras rochas.
Messias e eu somos os primeiros a atingir o cume do Neblina às 16h10.
O jovem quando põe o pé naquele lugar, considerado sagrado pelo seu povo, grita entusiasmado: Neeebliiinaaaa!! Hasteada em um mastro, a bandeira brasileira acena, trêmula, as boas-vindas. Os demais integrantes da expedição não tardam a chegar.
Abraços e congratulações são trocados entre nós. Emocionada, verto algumas lágrimas, enquanto Lili me dá um abração. Marcelo procura o tal livro de assinaturas mas não o encontra. Eu nem faço questão de tal registro. Basta saber que consegui chegar aonde havia planejado. Esta é minha satisfação. O resto é fricote.
Faz frio e venta no cocoruto desse colosso rochoso com seus respeitáveis 2.993 metros. Seria suportável o frio se se pudesse enxergar a paisagem ao redor. A espessa névoa não permite que se distinga nada além de 10 metros.
Como em um passe de mágica, na direção leste, as nuvens, por breves instantes, dispersam-se e somos agraciados pela fugaz visão da magnífica paisagem que se descortina abaixo de nós: vales, picos e serras a perder de vista. Dura pouco, infelizmente, tal cenário!
Resignados, tratamos de jantar e nos deitamos cedo, porque o frio deve beirar os 6º C. Lili, Marcelo e eu ocupamos uma barraca enquanto Pepe, Messias, Auderiano e Delegado ocupam outra. O topo, de pequenas dimensões, não comporta mais que 4 barracas.
Alegremente, nós três tagarelamos por um bom tempo enquanto o sono não vem. Eita vida boa essa!! Quero mais e mais e mais provar dessa adrenalina!! Tô viciada, tá ligado?
Depois de uma noite mal dormida pra caramba, acordo às 6h. O motivo é meu nariz entupido, embora a garganta não mais me incomode, graças ao antibiótico ingerido ontem. Choveu e ventou durante quase toda a noite. Pinta uma preguicite de levantar pois o céu mantém-se nublado e a temperatura beira os 8º C. Mas nem tudo está perdido.
Marcelo nos chama para fora da barraca para ver o rasgo vermelhão do nascer do sol, pintando na banda oriental. É… o dia está prestes a dar a cara a tapa. O agudo e espaçado som de um breve bipe chama minha atenção. Pepe esclarece ser proveniente de uma espécie de grilo que habita o Neblina.
Seu som nada tem de estridente se comparado àqueles produzidos por seus primos gaúchos. Pesquisando, tomo ciência de que a cantoria é produzida pelo macho para atrair a fêmea em época de reprodução. O som origina-se do atrito dos pelos existentes em suas asas.
Quanto mais barulhento é seu canto, mais afastada se encontra a fêmea, suavizando-se quando ela já se encontra acochadinha junto dele. Gesto delicado desse animal em baixar a bola quando já conquistou seu par, hein? Tem muito homem que devia aprender com os grilos tais requintes de sedução, não é mesmo?
Decidimos não fazer a caminhada até o Pico 31 de março porque a espessa cerração impede que se visualize a paisagem circundante. Às 8h30, em meio ao denso nevoeiro que não dá trégua, iniciamos o caminho de regresso ao acampamento-base.
À medida que perdemos altitude, as espessas brumas dissolvem-se, podendo ser avistada, mais uma vez, o extenso maciço rochoso da serra do Ouro. Mais ao longe a do Gelo. A trilha do acampamento-base ao igarapé do Tucaninho, quando vimos, foi basicamente um declive. Agora, na volta, o que era descida, se torna subida.
As pernas, cansadas pela exigência do dia anterior, acusam fadiga, mas nosso ânimo continua animadíssimo. Consigo, finalmente, ver a feérica coloração azul vermelha das araras canindés enquanto desço do Neblina…ulálálá!!
Quando chegamos, no início da tarde, ao acampamento-base encontramos fazendo companhia a Eli (com os pés crivados de bolha, nosso parceiro não pôde subir conosco até o topo do Neblina) o famoso Brizola (tal apelido deve-se à propaganda em favor do carismático político gaudério na eleição presidencial de 1989) e seu parceiro, Paisano, natural da Colômbia, dono de encovados olhos azuis.
Circula à boca pequena um boato de que é fugitivo das Farc, motivo por que evita de ir a São Gabriel para não topar com membros dessa organização, que, volta e meia, descem o rio Negro para fazer compras na cidade. Paisano, apesar de seus 70 anos, não se furta de carregar mochila pesando mais de 30 kg.
Não só a respeito do velho mineiro colombiano pipocam as fofocas. Brizola também leva no cangote uma mochila de maledicência. Dizem as más (?) línguas que sua atividade no garimpo é tolerada por militares e Polícia Federal em troca de informações sobre a biopirataria na região. Olha, se for verdade mesmo, pela primeira vez não me nego a admirar seu dedo-durismo. Dedura, Brizola, dedura, sim, essa gentalha!!
Eli definiu com acuidade a função de Brizola: síndico do Neblina. Tantas histórias que se contam por aqui que vá lá discernir ficção de realidade! Eli troca quase 4 gramas de ouro (a cotação do grama desse metal está em torno de R$ 40), que Brizola trouxera da Venezuela, por duas lanternas, um tubo de Gelol e alguns analgésicos. Aqui, nos cafundós da selva amazônica, o escambo ainda é moeda corrente! É normal os garimpeiros trocarem ouro por objetos que necessitem.
Desde que se chegou ao acampamento-base, há 2 dias, o tempo permanece nublado. À tardinha, ventos de rajada que se estenderam durante boa parte da noite me deixam um tantinho preocupada enquanto, deitada na rede, tento dormir. Bate um receio de sair voando junto com a tenda. Enfim, vencida pelo cansaço, pego no sono, ninada pela adorável vibração dos tuque-tuques metálicos expelidos pelos sapos martelos.
Os sons da floresta
Outra noite mal dormida. Se preguei os olhos foi apenas por umas 3 horas, se tanto. Brizola aparece enquanto estamos nos aprontando para deixar o acampamento. Pede um analgésico para Cobal, amigo seu. O motivo –bizarríssimo– deve-se à queda do garimpeiro que se estatelou de bunda, amassando as bolas nas pedras, pode?
Partimos, às 8h30, em meio a um céu nublado, rumo ao Bebedouro Novo. Agora que já não tenho a ansiedade da vinda, curto mais a paisagem e os sons que povoam este rincão amazônico.
A mudança na vegetação é nítida enquanto se vai perdendo altitude: as palmeiras rareiam, a variedade e quantidade de flores, que se concentram no trecho Neblina-Mirante, onde a forte incidência da luz solar permite uma intensa floração, deixam de colorir a paisagem e as exuberantes bromélias, cativas dos campos de altitude, são deixadas para trás.
À medida que penetramos no confinamento da zona escura e cerrada da mata, torna-se mais audível a vibração dos sons da floresta. É algo indizível, só estando aqui para saber.
Raros os momentos de absoluto silêncio que logo são preenchidos pelo matraquear das gritadeiras araras canindés; dos quase imperceptíveis ruídos de folhas que, em um balé gracioso, evoluem no ar antes de pousar no chão; do estrondo de árvores desabando; de galhos partindo-se; do sonoro pio de aves e cricrilar de insetos; de cascas de árvores se soltando dos troncos.
Uma sinfonia de barulhinhos bons. Não à toa, Villas Boas pirou o cabeção e deu uma guinada de 360º, alterando sua concepção musical após uma estadia de alguns meses embrenhado na mata amazônica. Pernoitamos em Bebedouro Novo e no dia seguinte na Boca do Tucano.
E os ruídos da floresta seguem me acompanhando. Para que ouvir mp3, se tenho o alarido cacarejante do cãocão, ave plumosa e de pouca carne, afora outros pios mais suaves de pássaros que desconheço? Katehe (bonito, legal, beleza, em yanomami) demais esses sons!
Regressando a São Gabriel da Cachoeira
Adorei saber da tirada parcimoniosa de Delegado quando Eli, já no bagaço por causa de seus pés, perguntou quanto tempo faltava até a Boca do Tucano. O índio, lacônico, lascou “Falta mais.” Ahahahaha… essa é boa! Somente no meio da tarde Armindo chega com a voadeira.
O dia lindo rapidamente se enevoa e trovões ao longe denunciam a iminência da chuva que não tarda muito em despencar. O chuvaral dura uns bons 20 minutos. O céu mantém-se encoberto, raramente, entrevendo-se nacos de azul.
A quantidade de pássaros é de encher os olhos: mergulhões, curicas (um tipo de papagaio), andorinhas, garças, martins-pescadores, maguaris e mutuns voam no céu. Incrível a variedade de formatos de ninhos, correspondendo cada tipo a espécies distintas de pássaros.
Embora descendo o rio, a viagem até a Boca do Maturaká demorou uma hora a mais que na vinda. No decurso desses 7 dias, o rio ficou mais seco devido à habitual estiagem nessa época do ano. A canoa para em uma prainha, situada a algumas dezenas de metros da boca do Maturaká.
Já lá se encontram instaladas em duas redes três índias: uma jovem com sua filhinha, pouco mais que um bebê, com ar de permanente zanga, e outra mais velha, mãe da jovem e avó da criança. Armindo as trouxera da aldeia, largando-as aqui enquanto ia ao nosso encontro na Boca do Tucano. Vão conosco de carona amanhã até São Gabriel.
Peço à jovem índia que faça uma demonstração com o arco e flecha que Marcelo adquirira de Bosco. Ela, meio envergonhada, empunha o grande arco e dispara com firmeza a seta que embica na areia alguns metros adiante. Nos tempos de antanho, nem tão longínquos assim, as mulheres yanomamis também participavam dos embates com tribos rivais.
A noite cai e o céu permanece nublado. Bem cedinho, partimos da Boca do Maturaká. Pepe, durante a navegação no rio Cauaburis, conta que do outro lado da fronteira, na pequena cidade colombiana, ainda controlada pelas Farc, é necessária permissão do comandante dessa tão temida organização paramilitar para ser visitada, pode?
Agarradas nos galhos mais altos de certas árvores, sementes arredondadas lembram cogumelos. Enormes costelas de adão parasitam árvores sem dó nem piedade. Despontam entre o arvoredo jauaris, açaís, pupunhas, paxiúbas e inajás, dentre as muitas espécies de palmeiras existentes no verdor da mata amazônica.
Já navegando no igarapé Yá-Grande, uma tabuleta indica o limite territorial entre as terras dos yanomamis e aquelas pertencentes aos tukanos. Dando adeus, então, ao reino dos yanomamis, adentramos agora o reduto dos tukanos, soberanos absolutos do pedaço, onde a comunidade Yá-Mirim, situada à beira do km 85 da BR-307, é o destino final de nossa navegação e nossa aventura.
Depois de carregar todo o tralharedo da voadeira para o Bandeirantes, partimos rumo a São Gabriel aonde chegamos antes do cair da noite. Dia seguinte, ao entardecer, passeando à beira do rio Negro, curto a agitação na praia, enquanto o sol se põe. Crianças jogando bola, casais passeando de mãos dadas, homens correndo no calçadão e jovens, simplesmente, curtindo, sentados na areia.
Canoas cruzando o rio, transportam os índios kotiria dow, tribo que vive na margem oposta. De pequena estatura e porte franzino, dão ares com os pigmeus. A Bela Adormecida mal se entrevê, ao longe, encoberta pela névoa.
Para fechar com chave de ouro nossa expedição, jantamos na rua do Badalo, onde nos deliciamos com dois tucunarés grelhados, regados a cerveja e caipirinha de goiaba e ato contínuo nos tocamos, assanhados, para o Boca Rica (o nome, por óbvio, é uma alusão aos dentes de ouro que enfeitam a boca de muitos homens da região), cabaré situado a uns 4 km da cidade, onde o forró rola solto.
Quisera permanecer mais tempo por aqui, infelizmente, meu voo parte amanhã à tardinha para Manaus. Ai, São Gabriel, já tô com saudades antes de partir!
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Aviso aos passageiros 1: Se você se interessa pelo Norte, a turismóloga Isadora Santos esteve em Belém e compartilha o que viu na cidade
Aviso aos passageiros 2: Se a ideia é ir pro meio do mato, a Nathaly Fogaça, idealizadora da Agência Vamos, empresa turística voltada ao público feminino, dá a dica de visitar a Cachoeira (ou Cascata) da Baronesa, no Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro