Brasileiro conta como foi escalar o ponto mais alto da América do Norte
O Check-in já publicou o relato de quando Marcelo Lemos subiu ao topo do Kilimanjaro, o ponto mais alto da África. Desta vez, você pode saber como é escalar o Monte McKinley ou Denali, o mais alto da América do Norte.
Quem nos conta sobre a empreitada é o alpinista e escritor Thomaz Brandolin. Autor de várias obras, ele está lançando o livro “Um Outro Mundo lá Fora – Expedições ao Ártico, Antártica, Alasca e Himalaia”, que reúne histórias de viagem feitas de 1986 a 2012.
Foi em junho de 1986 que o paulistano atingiu os 6.194 metros do Monte McKinley ou Denali, no Alasca. Pelo relato, extraído do novo livro, é possível ver quão perigoso é um projeto como esse.
Em tempos de coronavírus nossas viagens ficaram mais restritas. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email checkin.blogfolha@gmail.com.
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Parte 1 – Monte McKinley/Alasca (Monte Denali para os locais)
4º dia – quinta-feira, 19 de junho – Cume – 6.194 metros
Acordamos cedo. Lentamente e em silêncio arrumamos nossas mochilas. Embora confiantes, pairava uma tensão no ar. Ventava forte e o ar glacial do lado de fora da barraca era paralisante. Esperamos até quase meio-dia, quando o vento deu uma diminuída, para nos conectarmos à corda. Era um ritual quase diário. A partir dali e até o final do dia nossas vidas estariam conectadas àquela corda. Demos um emocionado abraço um no outro e saímos para o ataque ao cume! Havia sol e céu azul, mas as rajadas de vento arrancavam a neve da superfície e jogavam na nossa direção. Naquele frio, realmente era um aborrecimento escalar com neve sendo jogada contra o rosto. Ofegante devido ao ar rarefeito, sentia o vento áspero e gelado rasgar minha garganta, me gerando um acesso de tosse.
Saindo do acampamento, lentamente alcançamos a base da longa aresta que nos levaria ao nosso destino: o cume da montanha, ainda invisível e a muitas horas dali.
Conforme fomos ganhando altitude, o vento foi aumentando de intensidade, criando uma suave cortina de cristais de gelo suspensos no ar. A força do vento produzia um ruído que sufocava qualquer vestígio do silêncio típico daquelas paragens. O termômetro registrava 28 graus abaixo de zero, mas a sensação térmica era muito inferior a isso. Uma situação que poderia congelar qualquer parte exposta do corpo em questão de minutos.
Durante praticamente três horas subimos em silêncio, lenta e calmamente, cravando as pontas dos crampons e da piqueta na neve crocante. A paisagem em volta de nós era espetacular, com montanhas a perder de vista. Com os óculos especiais para neve, o céu ganhava um azul ainda mais intenso, bonito de se ver. Eu parava a cada quatro ou cinco passos para respirar aquele ar rarefeito, que machucava meus pulmões. Sempre ofegantes e incomodados com o barulho e a força do vento, a comunicação entre nós limitava-se a esporádicas trocas de sinais.
Subindo na frente, de cabeça baixa, eu esquadrinhava cada centímetro daquela rampa gelada. Era preciso ser cuidadoso ao dar cada passo, pois o vento às vezes me desequilibrava. Mas nada disso nos abalava. Lutando para prosseguir, mergulhei em meus pensamentos e me concentrei apenas no passo seguinte.
Estávamos numa rampa pouco inclinada –30°– que levava direto ao Denali Pass, mas muito batida pelo vento. A neve, ali, estava dura como um concreto, e qualquer escorregão, se não fosse travado na hora, podia levar o alpinista de volta ao glaciar, dois quilômetros abaixo! Aliás, foi provavelmente ali que morreu o japonês Naomi Uemura, dois anos antes, quando voltava do cume.
De repente vi dois homens descendo na minha direção. Vinham quase que correndo e pareciam assustados. Quando o primeiro me alcançou, gritou algo sobre o vento e continuou descendo. O segundo fez a mesma coisa. Só pude entender que o vento lá em cima estava um inferno, impossível subir, e que eles haviam desistido de prosseguir. Com o barulho ensurdecedor do vento rugindo em minhas orelhas, não dava mesmo para conversarmos.
Mais abaixo, éramos seguidos por cinco alpinistas. Mas, assim que os dois apressados escaladores passaram por eles, quatro viraram as costas e começaram a descer também. Só um insistiu.
O Beto e eu olhamos um para o outro em busca de uma resposta. O que fazer? Vamos continuar ou vamos voltar? Com uma tempestade prevista para o dia seguinte, voltar era quase que encerrar a expedição. Havia meses que estávamos envolvidos naquele projeto. De corpo e alma. Treinando, planejando, sonhando. Desistir logo agora? Depois que arriscamos nossas vidas para buscar mais comida?
Desistir depois de 13 dias subindo pela geleira, puxando um pesado trenó atrás de nós, contornando fendas, suportando frio, vento e ar rarefeito? Por outro lado, será que já não havíamos arriscado o suficiente nossas vidas para alcançar aquele sonho?
Quantos não passaram por sofrimentos ou morreram por não saberem a hora de desistir?
Minha cabeça ficava imaginando coisas, analisando alternativas e riscos. Mas o raciocínio, carente de oxigênio, se misturava à adrenalina e a sentimentos de medo e raiva, uma raiva que me impulsionava para cima, positiva e perigosa, como se dissesse: “Pode vir, vento, você não vai me fazer desistir!”.
Estávamos agora a uns 5.700 metros de altitude. Quem sabe, talvez, aquela fosse nossa única chance? Tínhamos bastante comida no Campo 7, mas teríamos força física e psicológica, além de condições climáticas para mais uma tentativa?
Entorpecido pelo frio e pela falta de oxigênio, tentava refletir sobre os prós e contras de continuar. O coração batia forte, a boca estava seca, e precisávamos tomar uma decisão. E rápido. Esperei o Beto chegar até mim para decidir o que fazer.
O fato de estarmos bem equipados e com roupas adequadas ajudava, então, em poucas palavras, decidimos insistir mais um pouco!
O vento não dava moleza e só aumentava sua fúria. A ventania era tão forte que nos obrigava a escalar encurvados e só dava para sentar para descansar quando havia alguma pedra grande para nos proteger. A cada parada, o alpinista que seguiu solitário mais abaixo se aproximava de nós. Porém, quando ele parava para descansar, nós já estávamos prontos para prosseguir. Nossos movimentos eram tão lentos que o mundo parecia avançar em câmera lenta. Mas seguimos para cima. Iríamos até o limite de nossas forças.
Numa dessas paradas, o americano pediu que o esperássemos. Ele nos perguntou se era possível esperá-lo mais acima, perto do cume, para se conectar à nossa corda para vencer a última aresta, muito exposta e perigosa, principalmente naquele vento. Claro que sim, respondemos.
Finalmente, quando atingimos o Denali Pass, viramos para o lado sul da montanha, e o vento, enfim, amainou, como se tivesse desistido perante nossa teimosia.
Quando avançamos por um imenso platô a 5.980 metros de altitude, conhecido como Campo de Futebol, avistamos o cume pela primeira vez. Ao vê-lo ali na frente, tão perto da realização de um sonho, não pude evitar as lágrimas. O Beto também chorava de emoção. A pressão psicológica dos últimos dias nos tornara mais emotivos. Ao pressentir que iríamos chegar lá, tiramos um caminhão das costas.
Aos poucos escalamos mais uma rampa nevada de 120 metros e, exaustos, paramos para esperar pelo americano. Chegando à beirada do abismo, avistamos, surpresos, uns três quilômetros abaixo, um mar de nuvens cobrindo toda a gigantesca geleira que havíamos percorrido nas duas semanas anteriores. Apenas alguns picos conseguiam se sobressair. Ali tivemos a real dimensão da nossa jornada. Cumes e platôs que vimos de baixo, agora estavam aos nossos pés. Era uma visão espacial inimaginável, de rara beleza, que só estava ao alcance dos mais persistentes.
Quando o alpinista chegou e descansou, o Beto passou para o meio da corda e ele se encordou no final.
Ao ver o quanto a última aresta era afiada e perigosa, com abismos infinitos de ambos os lados, entendi a preocupação do americano. Qualquer passo em falso, e seria o fim.
Recuperamos o fôlego, respiramos fundo e, cuidadosamente, pé ante pé, prosseguimos. Com o coração quase saindo pela boca de emoção, parando para descansar a cada dois passos, em poucos minutos subimos a última rampa de neve e alcançamos o ponto mais alto da América do Norte. O Beto e eu nos abraçamos emocionados. Amigos de tantos anos, nós tínhamos conseguido! Foi um momento sublime. Eram 19h30, o céu ainda claro, com muitas nuvens. Olhávamos em todas as direções do infinito, absorvendo o encanto e a magia transcendentes de cada detalhe daquela imensidão. Raios de sol rasgando algumas nuvens davam um toque surreal ao cenário. Se a felicidade são aqueles momentos que você não quer que acabem, então o que sentíamos era a felicidade mágica e absoluta.
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Aviso aos passageiros 1: O casal de jornalistas João Paulo Mileski e Carina Furlanetto viajou pelo Brasil e por países aqui da América do Sul a bordo de um carro 1.0. Eles, inclusive, acabaram de lançar um livro sobre a empreitada, o “Crônicas na bagagem: 421 dias na estrada – uma jornada de desprendimento pela América do Sul”
Aviso aos passageiros 2: O jornalista e caubói Filipe Masetti lançou recentemente a obra “Cavaleiro das Américas rumo ao Fim do Mundo”, sobre quando percorreu, a cavalo, o trajeto Brasil-Argentina. No Check-in, é possível ler o trecho sobre a temporada de incêndios que enfrentou na Argentina, em janeiro de 2017