Policial aposentado viaja de ônibus pela América Latina com mochila nas costas

Muita gente acha que viajar com uma mochila nas costas ou enfrentar perrengues fora de casa é coisa de “jovem sem juízo”. Samuel do Lago está aí para mostrar que não é bem assim.

Como ele começou a trabalhar cedo, aos 8 anos, teve a oportunidade de se aposentar aos 50.

Em um primeiro momento, o policial aproveitou a aposentadoria precoce e passou 13 meses na estrada, viajando pelo Brasil.

Depois, aos 52 anos, voltou a colocar a mochila nas costas para desbravar a América Latina, de ônibus. E foi nessa idade que ele descobriu o mundo de hospedagem em hostels.

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Aos cinquenta anos já estava aposentado. Parece cedo, mas comecei a trabalhar aos oito. Não tive acesso, nos momentos ditos convencionais, a parte das brincadeiras de criança e quase todas as aventuras que os jovens fazem.

A aposentadoria expôs a fragilidade de um casamento que se arrastava e, com o divórcio, decidi começar tudo de novo.

Perigosamente livre, tive que reunir forças para encontrar o equilíbrio emocional que a profissão e o casamento tinham fragilizado e viajei para o interior paulista para refletir sobre o que faria da vida.

Estava dentro de um hotelzinho barato, após perambular pelas cidades próximas a Rio Claro, quando um amigo me ligou de Salvador informando que na emissora em que trabalhava precisavam de um repórter com o meu perfil. Imediatamente fechei a conta, voltei pra casa, arrumei as malas e fui. De mudança.

Recomeçar a vida numa cidade festiva como a capital baiana era tudo o que o novo solteirão da praça precisava. Mas de bom mesmo foi só a coragem que o convite deu para mudar de estado, pois ao chegar em solo soteropolitano a possibilidade de emprego não se concretizou. Ao menos ganhei o impulso necessário para realizar um antigo sonho que era conhecer todo o país. E assim, durante 13 meses e nove dias, percorri, literalmente, do Oiapoque ao Chuí.

Samuel quis viajar de ônibus pelas Américas para conhecer geograficamente o percurso (Arquivo pessoal)

Ao retornar a São Paulo, sem casa, sem mulher, mas com doze irmãos, fui para casa de um deles e permaneci lá durante os festejos de final de ano. Depois, fui morar em Resende (RJ), onde havia passado minha infância.

Lá, aluguei uma casa do século 19, de quase 300 m², onde ocupava o tempo escrevendo o livro sobre a viagem pelo Brasil.

Havia passado nove meses e a monotonia de uma cidade interiorana me incomodava, mas não tinha verba o suficiente para uma nova jornada. Contudo, o tédio me deu ousadia. Imaginei: se sobrevivo aqui com a pouca renda que tenho, também consigo por lá, basta ter o dinheiro extra das passagens de ônibus. E assim comecei a pôr em prática o planejamento de uma viagem pela América do Sul mochilando.

Fui a uma loja da cidade, comprei um saco de dormir e alguns acessórios básicos, passei em São Paulo para me despedir da família e segui viagem no dia 1º de setembro de 2012, aos 52 anos.

Da capital paulista fui para o Paraguai.

A opção de fazer todo o percurso até a Venezuela de ônibus era motivada pela minha resistência a avião e pela oportunidade de conhecer geograficamente o percurso.

Depois de viajar toda a noite sem pregar os olhos, ansioso, imaginando o que aquela aventura me reservaria, cheguei sonolento pela manhã na rodoviária de Assunção. Ao fazer o câmbio, percebendo minha desatenção, consideraram os cem dólares que pedi para trocar por guaranis como sendo reais e, assim, meus parcos recursos foram desfalcados.

Seria minha primeira experiência me hospedando em hostel, o que criava uma certa expectativa, mas logo descobri que o ambiente é uma extensão da própria casa. A diferença é a convivência diária com pessoas de nacionalidades e culturas diferentes, além de dormir no mesmo quarto com elas.

Embora nunca tivesse estudado espanhol, foram cinco dias em solo paraguaio com passeios e conversas agradáveis, mesmo com a limitação da língua.

Finalizei minha visita ao Paraguai com uma cantoria com a família da proprietária do hostel que, inevitavelmente, inclui “Galopeira” no repertório.

O destino seguinte foi o Uruguai e, embora já me sentisse confortável no papel de aventureiro e me considerando com alguma experiência em hostel, ainda assim não foi suficiente para escolher a cama: todas estavam ocupadas e só me restou a parte de cima de um beliche no meio do quarto.

O desconforto não prejudicou o convívio com os hóspedes, que foi enriquecedor. Tinha italiano, português, chileno, colombiano e, naturalmente, uruguaios.

Nícolas, um dos quatro irmãos que ajudavam o pai, proprietário, foi quem me recebeu. Para mostrar sua generosidade na hospedagem, me ofereceu uma cerveja enquanto falava do seu país. A atitude foi tão significativa que, dois anos depois, os recebi em minha casa, em Resende.

Ficar à vontade naquele ambiente festivo favoreceu para que eu praticasse o espanhol e entre tantas palavras aprendidas, chamou-me a atenção o quanto demorei para aprender que “ayer” significava “ontem”.

Uma semana depois já estava na Argentina e, sete dias depois, no Chile.

Dos dias em Santiago, impressionou-me ver todas as casas com a bandeira do país. Era semana da pátria e, embora fosse por força de lei, uma chilena disse que mesmo que não fosse obrigatório eles fariam, por amor e respeito ao país. Achei bonito o patriotismo.

Rumo a Oruro, na Bolívia, pernoitei no deserto chileno de Atacama. Das hospedagens, ao final da viagem, classifiquei como a pior.

Como das vezes anteriores, já havia pesquisado pela internet onde ficaria, mas encontrar duas paulistas no ônibus trouxe um pouco do alento de estar entre os meus e, por isso, decidi mudar a opção para acompanhá-las no hostel Mamut.

O calor e cerca de dez beliches todos ocupados, num quarto onde ficavam homens e mulheres, só não foi pior porque restou-me um colchão de casal, no chão, onde tentei dormir.

Perto de uma da madrugada chegou um cidadão tropeçando nas coisas e procurando sua cama. Acomodou-se na parte de cima do beliche em que estava uma das paulistas. Me pareceu embriagado. Nem bem deitou e começou a roncar. Ronco alto. Intercalado por flatulências no mesmo volume. Foi desconcertante, mas não tinha pra onde ir, já estavam todas as dependências ocupadas. Então restou-me esperar que a noite não fosse tão longa.

Ao amanhecer, conversando com a brasileira que dormiu no mesmo beliche do rapaz inconveniente, confidenciou-me que sentia um mau cheiro, mas estava tão cansada que não conseguiu acordar.

A altitude que já sentia no Atacama só aumentou ao passar por Oruro e La Paz, na Bolívia, Cusco e Machu Picchu, no Peru, e Quito, no Equador. Ao chegar à colombiana Bogotá já me sentia ambientado.

No trajeto de Cusco para Machu Picchu, tomei vários comprimidos, mas não foram suficientes para conter o aumento da pressão arterial. Aproveitei-me da companhia de um médico cubano, que dividia comigo a poltrona do trem, na esperança de uma solução para o meu problema. Após contar a quantidade de comprimidos que havia ingerido, limitou-se a dizer que era “demasiado”.

A escolha da poltrona

Na hora de comprar as passagens, fazia a escolha da poltrona repetindo o hábito adquirido na viagem pelo Brasil de sentar-me na de número 24.

Por ficar no centro do ônibus e no corredor direito, intuí que se houvesse um acidente, batendo de frente ou por trás, sofreria um impacto menor. Se fosse pela lateral também, já que estava do lado oposto ao tráfego. E, por fim, também me livraria do incômodo de sentir necessidade de ir ao banheiro e ter que acordar o passageiro ao lado.

Todavia essa técnica não fez nenhum sentido no trajeto de Cusco para Lima. A viagem de quase 24 horas transcorreu por rodovias tão perigosas que um acidente livraria apenas quem não estivesse embarcado.

Na saída do Equador e entrada na Colômbia experimentei o desconforto de ter que encarar o motorista do táxi, que queria superfaturar em quase cinco vezes a corrida, apenas pelo fato de ter saído duas quadras do itinerário, para sacar dinheiro num caixa eletrônico. Ainda assim acabei pagando o dobro do combinado, mas com a sensação de que corria risco em terra estranha.

Samuel do Lago em frente à placa da Colômbia (Arquivo pessoal)

O outro perrengue se deu na chegada à Venezuela.

Troquei os poucos pesos colombianos que tinha por bolívares e, ao chegar a San Cristóbal, me dirigi a um hotelzinho popular ao lado da rodoviária, paguei o pernoite, deixei minha mochila e fui sacar dinheiro, mas não consegui nos três únicos caixas que havia na cidade. Então restou-me apenas o dinheiro do jantar e, para o dia seguinte, teria que buscar solução para seguir a Caracas.

Salvou-me o contato virtual com uma venezuelana, residente na capital. Pela manhã, lhe falei sobre minha dificuldade e ela começou a buscar na cidade alguém que pudesse me ajudar, já que estava a cerca de oitocentos quilômetros.

Na hora do almoço, a fome veio acompanhada da insegurança de estar onde não conhecia ninguém, longe de casa. Então tive que potencializar meu limitado talento para ator e representei uma fome de quem não comia havia um mês. “Yo tengo hambre”, “Tengo plata, pero cachero no acepta mi tarjeta”. O timbre grave e o tom de voz em pânico mereceu o alento de uma senhora, que aguardava na recepção do hotel seu esposo descer.

– Calma, señor, que pasa? Lhe explicava quando o esposo chegou. E assim ela lhe convenceu a me dar uns trocados.

Repeti a cena com o dono do restaurante, pois o dinheiro não era suficiente, e consegui um prato de comida.

Eram três da tarde quando chegou uma senhora distinta, com seu filho pequeno, e me levou de carro até a rodoviária, comprou-me a passagem e ainda me ofereceu uns trocados para eu comer na viagem. Era a esposa de um político local que a minha amiga virtual contatou. Depois descobri que a minha conhecida era influente politicamente no país.

Minhas despesas eram muito controladas, não permitia qualquer exagero, pois poderia faltar no momento seguinte.

Ao todo, Samuel do Lago já visitou 34 países (Arquivo pessoal)

No Chile, próximo ao hostel que me hospedara vi numa placa “Minuta a lo pobre”. Chamou-me a atenção o nome e o preço. Pedi informação ao garçom e ele explicou que o prato de arroz, bife, ovo, batata frita e salada era bem servido. “Los pobres comen largo”, explicou. Ali fazia todas minhas refeições. Tomava o café da manhã que era oferecido no preço da diária do hostel e protelava ao máximo o horário do almoço, para pular o jantar. Mas a possibilidade de ficar também sem o almoço em San Cristóbal me desestabilizou emocionalmente.

No trajeto para Caracas, já com clima nostálgico de quem finaliza a viagem, fiz um balanço, refletindo sobre tudo que havia experimentado e, ao desembarcar do ônibus, fui direto ao caixa eletrônica. Desta vez tive outra grande surpresa que mudaria a história da viagem. Ao verificar o saldo, descobri que tinha dinheiro para dar a volta ao mundo, se quisesse. Assustado com o equívoco que o banco poderia ter cometido, falei com meu irmão, em São Paulo, e fui informado que aquele valor se referia a uma ação judicial trabalhista que havia ganho. Alegre, devolvi o dinheiro que a amiga emprestou e ainda lhe ofereci um almoço que, para a minha surpresa, ficou num valor quase equivalente a todas refeições que tinha feito na viagem, por conta dos vinhos.

Ânimo revigorado, avaliei que nunca estivera tão perto do México, por isso seguiria viagem. E assim entrei na América Central, percorrendo todos os países até chegar à terra dos maias, numa viagem que durou três meses e na qual colecionei muitas emoções, porém diferentes das que tinha vivido ao longo dos 30 anos trabalhando como policial em São Paulo. A experiência foi tão envolvente que pouco tempo depois já estava novamente em viagem. Desta vez pela Europa. Somando as viagens anteriores, atingi a marca de 34 países visitados.

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Aviso aos passageiros 1: Outro brasileiro que está viajando pela América Latina é o Guilherme Valadão, que relatou como foi viajar de bicicleta por Brasil, Colômbia e Venezuela

Aviso aos passageiros 2: O casal Alessandra e Leo também estão rodando pela América Latina, mas de carro. Aqui, eles contam por que adotaram o acampamento como estilo de viagem