Mochileiro conta como foi viajar por três meses pelos Bálcãs

Conhecer a Europa é o sonho de consumo de muita gente, e, quando se pensa a respeito, as pessoas facilmente se lembram de Portugal, França e Inglaterra. Fora os lugares mais consagrados, podem até citar países do centro europeu, como Polônia e Hungria. Mas e os Bálcãs?

Caso você nunca tenha cogitado visitar a região, no sudeste do continente, o economista paulistano Rafael Dallacqua (@viajecomintensidade) pode te convencer a ir.

Na estrada desde abril de 2018, o mochileiro já passou por Sudeste Asiático, Índia e vários lugares da Europa. E os últimos três meses foram dedicados aos países balcânicos. 

Enquanto viaja, Rafael pesquisa bastante sobre a história local a fim de entender todas as nuances da região. Para melhorar essa percepção, ele também pega carona e se hospeda na casa dos nativos.

Em tempo: finalizado o período nos Bálcãs, o mochileiro vai passar uma temporada entre Oriente Médio e África.

Você tem alguma viagem legal que deseja compartilhar? Visitou algum lugar que merece muito ser conhecido pelos outros? Escreva para o Check-in pelo email checkin.blogfolha@gmail.com.

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Costumo chamar as minhas viagens de jornadas. E acabei de finalizar uma de três meses pelos sete países que formavam a antiga Iugoslávia (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Macedônia do Norte e Kosovo), mais a Albânia. Pode ser chamada de uma viagem pelos Bálcãs, já que todos estão localizados na península Balcânica. 

Uma região praticamente esquecida da Europa, negligenciada nos livros escolares e resumida ao estopim da Primeira Guerra Mundial, mas que eu garanto que vale muito a pena conhecer. Cheia de belezas naturais, muita história, pessoas amigáveis e muito mais econômica do que os países mais famosos da Europa.

Comecei essa jornada pela Croácia, definitivamente o país mais turístico desse grupo e, juntamente com a Eslovênia, o que está mais inserido no bloco europeu –são os únicos que fazem parte da União Europeia.

Para potencializar toda a merecida fama do país, Dubrovnik foi um dos principais sets de filmagens da série de maior sucesso da história, “Game of Thrones”. Como um grande fã, a cidade foi parada obrigatória para mim. 

Depois conheci a badalada ilha de Hvar e de lá segui para destinos menos turísticos e mais tranquilos, como a ilha de Mljet e o parque nacional de Krka, mais barato e menos disputado que os grandiosos lagos de Plitvice. A capital Zagreb também tem seu charme e menos turistas.

A Eslovênia nem estava nos meus planos, mas ainda bem que entrou. Enquanto eu sugeriria passar apenas um dia na pitoresca capital Liubliana, diria para você não contar o tempo na região de Bled.

Parece que saiu de um livro de conto de fadas. A pequena cidade em torno do mundialmente famoso lago Bled é rodeada de montanhas e uma natureza aparentemente intocada, parte do Parque Nacional de Triglav. Para amantes de trekking (fazer trilha) e hiking (caminhada), esse é o paraíso. 

De volta para Liubliana, tomei um ônibus noturno para Sarajevo. Bastou um único dia na capital da Bósnia-Herzegovina para me encantar com a cidade e ter a certeza de que teria que voltar e ficar por mais tempo, pois estava lá só de passagem. 

Foi a partir daí que decidi viajar de carona por esses países. Queria ter mais contato com os habitantes, escutar suas histórias e absorver o máximo de sua cultura. Como eu não me planejava muito, estava com dificuldades de fazer couchsurfing (plataforma para ficar hospedado na casa das pessoas), mas a carona era uma oportunidade perfeita. Além de ser um exercício de paciência, humildade e auto-conhecimento.

A minha primeira foi com um bósnio-sérvio, e comecei a entender a divisão étnico-religiosa da Bósnia, em um velho Volkswagen preto. Zoran devia ter uns 50 anos, não falava muito inglês, mas sabia o suficiente para me contar um pouco sobre si. Falou sobre como a Guerra da Bósnia quase arruinou a sua vida e como ele perdeu um pé ao pisar em uma mina terrestre. 

Dei bastante sorte na minha primeira carona: Zoran estava indo direto a Montenegro, o que já era quase meio do caminho para a Albânia. E o que era para ser apenas uma parada em Montenegro se tornou uma semana. O país me encantou com suas belas montanhas. 

Fiquei alguns dias em Kotor e, ao invés de continuar seguindo a rota mais turística que vai descendo pelas cidades do litoral, preferi me enfiar no interior do país e rumei para o Parque Nacional de Durmitor. Fui parar na casa de uma família na pequena cidade de Zabljak. Os montenegrinos são hospitaleiros e muito sossegados, são tipo os hippies dos Bálcãs. Gostei muito da vibe deles.

Se eu achava que o Triglav era o paraíso para quem gosta de trekking e hiking, é porque eu ainda não conhecia o Durmitor. Que lugar incrível. São tantas montanhas por lá que um dia acabei subindo a terceira maior do país sem saber, o monte Meded. 

No Parque Nacional de Durmitor visitei também o Canyon Tara, que dizem ser o segundo maior canyon do mundo, atrás apenas do Grand Canyon, nos EUA. São mais de 80 km de extensão de um desfiladeiro que chega a 1.300 metros de profundidade.

Me despedi de Montenegro e finalmente cheguei à Albânia. Cruzei de carona também, dessa vez com o albanês Pjeter, que foi o primeiro a me mostrar a hospitalidade desse povo. Os albaneses, na minha opinião, são as pessoas mais gente boa da Europa. Algo que é difícil de explicar o porquê, mas que é muito fácil de perceber quando você tem a experiência.

O país é uma mistura única de influências turca e italiana, com um ar soviético ainda pelas ruas e marcas de um passado recente que não foi nada fácil. Acho que é o único lugar no mundo onde é possível ver cidadelas medievais charmosas, nadar pelado em uma praia paradisíaca deserta e visitar bunkers de guerra abandonados, tudo no mesmo dia.

Em três semanas, rodei a Albânia de norte a sul, sempre de carona. Foi o local mais fácil de consegui-las. 

O mochileiro paulistano passou por Kotor, em Montenegro (Arquivo pessoal)

As nações dos Bálcãs têm muitas diferenças culturais, étnicas e religiosas entre si. É até estranho pensar que em algum momento formaram um só país: a Iugoslávia (lembrando que a Albânia não fazia parte). Dizem que o mérito de manter essa colcha de retalhos unida era do Josip Broz, mais conhecido como Tito, figura polêmica e famosa na região. Ele mesmo dizia:

“Sou líder de um país que tem dois alfabetos, três línguas, quatro religiões, cinco nacionalidades, seis repúblicas, que faz fronteira com sete vizinhos e na qual vivem oito minorias étnicas.”

Mas uma coisa é certa, ou melhor, três coisas. Em todos os países eu encontrei as burekas, uma espécie de torta geralmente recheada com carne, queijo, espinafre ou batata; o stapici, um tipo de salgadinho com manteiga de amendoim dentro; e o ajvar, uma pasta a base de pimentões vermelhos. Em todos os lugares também se pode encontrar excelentes cafés e chás turcos e as suculentas baklavas. Comida é outro ponto forte dos Bálcãs.

Cruzei a fronteira a pé para a Macedônia do Norte. Fui andando ao longo do lago Ohrid, que não só é um dos mais antigos e profundos da Europa, como um dos mais bonitos. Após repor as energias na região, segui para a capital Escópia.

A cidade passou por uma grande transformação nos últimos dez anos, resultado do projeto Skopje 2014, cujo objetivo era justamente dar uma nova cara para a cidade. Portanto, todas as estátuas e prédios imponentes em estilo neoclássico que se pode ver pelo centro e que parecem muito antigos têm, na verdade, menos de uma década.

Outra coisa nova é o nome do país, que passou a se chamar Macedônia do Norte desde fevereiro de 2019. Sem entrar em detalhes, há um disputa entre a Macedônia do Norte e a Grécia em relação à utilização do nome Macedônia. Essa é uma questão séria por lá e que vai muito além de ser apenas uma treta pelo nome –trata-se de identidade cultural.

Meu próximo destino foi o Kosovo, o país (que oficialmente não é um país) mais complicado da região atualmente. As coisas estão tranquilas agora, mas é preciso ter um cuidado com as fronteiras. Teoricamente ainda é uma região autônoma reivindicada pela Sérvia. Portanto, a única maneira legal de entrar e sair do país é cruzando pela Sérvia.

Eu não sabia direito como faria para chegar. Tomei um ônibus de Escópia até Bujanovic, no sul da Sérvia, e de lá cheguei de carona até a capital do Kosovo, Pristina.

Afinal, o que é um país? Kosovo tem um território definido por fronteiras com outros quatro países (possui controle de fronteiras), uma população com identidade cultural (etnia, língua e cultura próprias e diferentes da sérvia), governo e instituições próprios e relações com outros países. Além de bandeira, moeda, passaporte e Exército próprios.

Portanto, é um país, não? Bom, tem cem nações no mundo que o reconhecem dessa forma, mas há outros 93 membros da ONU que não –inclusive o Brasil. Para mim, é um país. Por isso comecei esse texto dizendo que visitei os sete países que integravam a Iugoslávia.

Me surpreendi positivamente. Pristina é uma cidade bem desenvolvida, jovem, liberal e com muita diversidade. É um bom exemplo para se quebrar o paradigma em relação a países de maioria muçulmana serem conservadores, assim como a Bósnia-Herzegovina.

Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, foi um dos pontos que Rafael mais gostou (Arquivo pessoal)

 

Aliás, falando nisso, optei por ficar mais tempo na Bósnia e dessa forma arrumei um trabalho voluntário em um hostel em Sarajevo pela Worldpackers. Para quem não conhece, através dessa plataforma é possível encontrar opções de trabalho não remunerado em mais de cem países, onde você troca algumas horas de atividade semanal por acomodação e outros benefícios, como refeições, por exemplo.

Mesmo com o céu sempre cinzento, Sarajevo me encantou e foi a minha cidade preferida dessa viagem. Há um ar misterioso, ao mesmo tempo em que exala alto astral. Por suas ruas parece que tudo se mistura: o antigo com o novo, o conservador com o alternativo. Depois de tudo o que essa cidade passou em sua história recente, vê-la pulsar nessa sintonia é um exemplo de superação.

Fiquei três semanas e tive a oportunidade de conhecer outras cidades, como Mostar, Jajce e Banja Luka. A minha intenção era conhecer locais com a maioria de cada um dos principais grupos étnicos-religiosos do país: bósnios-muçulmanos (bosniaks), bósnios-croatas (católicos) e bósnios-sérvios (católicos ortodoxos).

Mostar é o exemplo perfeito de como foi a Guerra da Bósnia, uma bagunça de proporções inimagináveis, que fugiu do controle de todos e na qual não houve ganhadores. Todos saíram perdendo e carregando feridas que ainda estão abertas na sociedade.

Tanto Mostar quanto Jajce são praticamente metade cristã (croatas católicos) e metade muçulmana, com a diferença de que na primeira há um clima maior de segregação enquanto que na segunda está todo mundo junto e misturado e, no que me pareceu, em harmonia. Há nas ruas uma sensação de superação, de que as dificuldades e as diferenças sempre podem ser deixadas de lado e que o melhor é viver em harmonia.

Para fechar esse quebra-cabeça faltava só uma peça, a Sérvia. Foi o meu último destino balcânico, porém recomendo que se comece por lá. Será muito mais fácil para entender sobre a Iugoslávia, o governo de Tito, o processo de dissolução, o lado da Sérvia nos conflitos que foram gerados posteriormente, e depois ir conhecendo os outros lados das histórias nos demais países. Lembrando que quando se fala de Bálcãs, nada se resume a apenas dois lados.

Como eu fiz o contrário e terminei a viagem na Sérvia, foi quase que inevitável chegar com uma imagem negativa do país. Principalmente após ter tido tanto contato com a Guerra da Bósnia. Porém, o importante é estar disposto a superar preconceitos e quebrar paradigmas. Aos poucos fui quebrando um a um e no final saí de lá com uma imagem positiva do país.

Na verdade, a Iugoslávia era formada por seis repúblicas e duas regiões autônomas e, como sou um perfeito perfeccionista, minha última parada foi na outra região autônoma que existe na Sérvia, Vojvodina. Fica no nordeste do país e faz fronteira com a Hungria e a Romênia. Enquanto a história lá também não é das mais simples, a situação é bem mais tranquila que no Kosovo. 

No fim de tudo, conheci o filho problemático da Europa, o caldeirão em ebulição, o barril de pólvora. Todos esses são apelidos que já teve essa região. Os Bálcãs são parte de uma Europa sem glamour e sem romantismo. Uma Europa esquecida, cuja história recente coincide com a minha infância e me faz reconhecer os meus privilégios e ser grato por tudo. Conheci, gostei e recomendo.

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Aviso aos passageiros 1: Reuni algumas dicas para fazer seu primeiro mochilão. Inclusive, relato como foi a minha primeira viagem com a mochila nas costas e todos os perrengues no livro recém-lançado “Embarque Imediato” (O Viajante, R$ 39,90, 180 págs.)

Aviso aos passageiros 2: Já contei aqui a história de dois mochileiros, o Davi, jovem que viajou pela África e pelo Oriente Médio, e o Samuel, PM aposentado que desbravou a América Latina com uma mochila nas costas